Nando, Presidente da Liga dos Amigos do Alcaide, Fundão.

ALCAIDE,
CAPITAL DO COGUMELO

Novembro é mês de festa na aldeia de Alcaide. Celebra-se o cogumelo, mais um daqueles trunfos endógenos que pode fazer a diferença no desenvolvimento local de uma aldeia ou região. O “Míscaros – Festival do Cogumelo” acontecerá mais uma vez pela vontade e organização da Liga dos Amigos do Alcaide (LAA) e Fernando Tavares ou “Nando” (foto), como é conhecido na aldeia e arredores, anda num frenesim desmesurado. Presidente da LAA há nove anos e uma das caras emblemáticas do festival e da associação, arranjou tempo para conversar com a iNature sobre a edição deste ano, a 13ª. Encontrámo-nos na sede da LAA, encontro ao qual se juntou Alfredo Laranjinha (última foto), um apaixonado pelo Alcaide que decidiu ir viver a reforma para a aldeia e contribuir para o seu dinamismo. Nas pequenas vilas e aldeias, as associações locais são muitas vezes os epicentros da dinâmica social e é cada vez mais frequente encontrarem-se várias gerações entre os  órgãos sociais, uma mistura de garra com experiência que, geralmente, origina bons resultados.

E vão 13 anos a celebrar o cogumelo na aldeia de Alcaide. Como é que começou esta aventura?
Nando (N) – O festival surgiu da vontade do Alcaide querer ter uma grande festa como, por exemplo, a Festa da Cereja, em Alcongosta.

Porquê a comparação com a Festa da Cereja, em Alcongosta?
N
- A Festa da Cereja começou por ser realizada no Fundão e quando se pensou em deslocalizá-la para fora da cidade, as aldeias de Alcongosta e Alcaide foram as duas hipóteses apontadas porque eram as localidades onde se produzia mais cereja. Chegou a pensar-se alternar a festa de três em três anos entre as duas aldeias, mas acabou por ficar em Alcongosta e as gentes do Alcaide ficaram zangadas (risos).

E porquê o tema do cogumelo?
N
- Por uma razão histórica e de tradição. Os nossos antepassados sempre deram muita importância aos cogumelos, sobretudo ao míscaro, porque há muito pinhal nos arredores da aldeia e esta variedade cresce nos pinhais. Em 2005 ou 2006, não sei bem precisar, a Liga dos Amigos do Alcaide (LAA) organizou a primeira atividade centrada nos cogumelos, um passeio. Nem havia a intenção de dar continuação à coisa, mas, em 2009, a direção da LAA e, em particular, o Hugo Cruz, o Nuno Alves e o Francisco Costas, que defendiam o potencial do cogumelo como pretexto para fazer qualquer coisa, arriscaram. E correu bem.

"Há uma grande proximidade entre a organização e a comunidade. Uma proximidade que nos permite ter uma grande abertura das pessoas, o que nos dá a oportunidade de mudar mentalidades.", "Nando" Tavares

A partir daí o Festival não parou de crescer.
N
- Sim, mas muito devagarinho. Eu costumo dizer que o “Míscaros – Festival do Cogumelo” nasceu sozinho. Na altura, o cogumelo não era um produto valorizado e foi difícil angariar apoios. Agora já é diferente, mas o cogumelo ainda não é valorizado como deve ser e os apoios ainda são poucos. Continua a ser uma festa diferente das demais da região.

Diferente, como?
N – Os “Miscaros - Festival do Cogumelo” é feito integralmente pelas pessoas da aldeia. Temos o auxílio da Câmara Municipal do Fundão na parte logística e alguns funcionários municipais a trabalhar connosco nessa área, mas a organização e a realização são da LAA e da comunidade. Há uma grande proximidade entre a organização e a comunidade. Uma proximidade que nos permite ter uma grande abertura das pessoas, o que nos dá a oportunidade de mudar mentalidades. Por exemplo, quando em 2015 decidimos abolir o uso de plástico no festival, houve uma grande apreensão, as pessoas não sabiam trabalhar sem o plástico, o descartável, mas aceitaram e conseguimos.

Míscaros - Festival do Cogumelo 2022Alfredo Laranjinha (AL) - Podemos afirmar que fomos o primeiro Festival de rua a abolir o uso do plástico. É engraçado porque agora quando as pessoas do Alcaide vão a uma festa ficam chocadas com o uso do plástico.

N - Além do Boom Festival, não conheço outro Festival de rua na região que tenha adotado esta prática de responsabilidade ambiental.

"Ainda não há uma consciência de preservação da natureza. A Serra da Gardunha continua a ser usada como vazadouro de lixo", Alfredo Laranginha.

Há uma preocupação da organização em sensibilizar a população e os visitantes do Festival para a proteção ambiental?
N - Sempre tivemos essa preocupação e acho que nesse objetivo também temos crescido. Este fim-de-semana vamos realizar uma atividade de apanha de lixo aqui na nossa parte da Serra da Gardunha. Mas ainda estamos muito longe do desejado.

AL – Ainda não há uma consciência de preservação da natureza. A Serra da Gardunha continua a ser usada como vazadouro de lixo. A nossa escola, pelo menos a do meu tempo, falhou. Na Noruega, onde tenho um filho a trabalhar, os comportamentos em relação à natureza são intrínsecos, vêm de dentro. Há uma filosofia instalada que faz do país um exemplo em termos de proteção e preservação da natureza. Eles desfrutam da natureza.
Em Portugal, acredito que os mais novos já tenham uma maior consciência do valor da natureza, mas vai demorar tempo até que isso se traduza em resultados. Ainda no ano passado, quando andávamos a preparar os passeios micológicos, encontrámos umas pessoas a apanhar caruma. Tentámos demovê-las, mas não foi possível. Não conseguimos fazê-las ver que não só estavam a prejudicar o ecossistema dos cogumelos como, indiretamente, estavam a prejudicar o Festival, a aldeia e a Serra.

Edição focada no conhecimento

O que é que estão a preparar de diferente para esta edição?
N – Este ano queremos dar um papel mais relevante ao conhecimento em torno do cogumelo. Vamos ter a “Arena do Conhecimento e Natureza”, uma tenda gigante que estará no espaço da sede da LAA, onde terão lugar workshops, palestras, debates e tertúlias sobre os cogumelos da Serra da Gardunha. Iremos reunir algumas das pessoas mais entendidas do país em cogumelos, como a bióloga Marisa Azul e vários professores universitários. Queremos trazer o tema do conhecimento científico para o festival e despertar a atenção dos nossos parceiros institucionais para o valor dos cogumelos da Gardunha no contexto do desenvolvimento local.

AL – Vamos tentar alargar o nosso âmbito de funcionamento à Casa do Cogumelo, também por forma a dar a saber que ali se recebem, tratam e vendem cogumelos. E vamos ter uma prova de vinhos do Alcaide, que já não é nova, mas é cada vez mais concorrida.

Cogumelos da Gardunha ilustrados por José MatosN - Haverá também uma exposição das quase duas centenas de ilustrações do José Matos (na foto à dir.), da Quinta Vale d’Encantos. Tudo isto será na Arena do Conhecimento e Natureza, que este ano terá um custo de entrada de 1 euro, valor que reverterá para financiar as nossas causas solidárias.

E quais são essas causas?
N
- São três: a ecológica, a inclusiva e a solidária. Este ano, as receitas angariadas nos acessos à Arena do Conhecimento e Natureza e no Mega Almoço serão usadas na reflorestação da Quinta Vale d’Encantos, na participação do Ricardo – filho do chef Joe Best, muito querido para nós e para o Festival –, que sofre de Síndrome de Down. Ele vai fazer um espetáculo de showcooking em colaboração com a APPACDM Fundão. Vamos também melhorar a acessibilidade do Festival. Este ano vamos dar uma atenção especial às necessidades especiais de quem nos visita e tentar proporcionar-lhes o maior conforto possível. Haverá estacionamento próprio, acompanhamento por parte do staff e “tascas acessíveis”. Queremos que o “Míscaros – Festival do Cogumelo” seja cada vez mais familiar e inclusivo.

A economia do Cogumelo

Sente-se o impacto do Festival na visibilidade e no mediatismo da aldeia. Há um Alcaide antes do Festival dos Míscaros e outro depois do Festival?
N - Ainda não conseguimos gerar a atratividade que desejamos. Para o conseguirmos temos de ter alojamentos e restaurantes na aldeia. Este ano abriu o primeiro alojamento local, a Casa do Visconde, e o “restaurante Cunha Leal”, que foi alvo de obras há 15 ou 16 anos, está ali, abandonado. Já houve muitas ideias, mas ninguém arrisca. A nossa ideia é fazer do Alcaide a Capital do Cogumelo e tornar a aldeia numa atração constante, associada ao conhecimento e à gastronomia do cogumelo. Por exemplo, agora, antes do Festival, gostaríamos de ter aqui pessoas todos os fins-de-semana a fazer passeios micológicos e a desfrutar da gastronomia associada aos cogumelos, mas não temos capacidade para isso.

"A nossa ideia é fazer do Alcaide a Capital do Cogumelo e tornar a aldeia numa atração constante, associada ao conhecimento e à gastronomia do cogumelo", "Nando" Tavares.

Falta massa crítica?
AL - Estou convencido que, quando a sede da LAA for o edifício que desejamos, teremos condições para o conseguir. Ao receber as pessoas aqui, sinto sempre uma pedra no sapato. Acho que não temos uma infraestrutura à altura das ideias que queremos implementar, concretizar. Precisamos de ter outras condições para conseguir dar o salto qualitativo que pretendemos.

O que é que falta à LAA para que possa ter um papel mais ativo nessa dinâmica que pretendem dar à aldeia?
N – Gostaríamos de ter aqui um cowork e um espaço com camaratas, porque entendemos que iria dar uma nova dinâmica à aldeia e capacitar a LAA. Ter aqui um espaço de trabalho e alojamento, não só iria proporcionar boas condições para a juventude da aldeia, como para quem quisesse vir para aqui estudar os cogumelos, por exemplo. Estamos convencidos que iria revolucionar a aldeia e os seus projetos. Nós não temos recursos para isso, mas agora existem apoios para este tipo de infraestruturas. Temos feito o nosso trabalho, criámos o festival, temos uma elevada atividade sociocultural, mas somos uma associação sem fins lucrativos. Precisamos de ajuda para dar o salto.  

Reunião de preparação do Míscaros- Festival do Cogumelo, Quinta Vale d'Encantos.E ao nível do empreendedorismo à volta da economia do cogumelo, sentiu-se algum efeito do festival?
AL – Não. A Casa do Cogumelo pode ser o início desse raciocínio, mas até agora, não. Pretende-se que seja um centro de recolha de cogumelos e é lá que são certificados os cogumelos que se comem no Festival, mas não funciona no sentido de estimular a atividade económica à volta do cogumelo.

"O cogumelo pode ter um impacto muito grande na economia local, diria que até semelhante ao impacto da cereja, porque embora não seja produzido em volume, é um produto de elevado valor acrescentado", "Nando"Tavares.

O facto de não poder ser cultivado dificulta a estratégia à volta da economia do cogumelo.
N - Verdade. Mas há outros caminhos. Ao que sabemos está em fase final de regulamentação Reserva Micológica da Gardunha que, ao que sabemos, será aqui nos baldios do Alcaide. A criação desta área podia ser o princípio de uma cultura mais organizada. Mas a organização do Festival e Liga dos Amigos do Alcaide são alheias a esta reserva.

A Quinta Vale d’Encantos já foi várias vezes mencionada. É um exemplo?
N - A Quinta Vale d’Encantos é propriedade de José Matos, um especialista, amante do cogumelo e um importante protagonista do Festival. Quando se encontra um cogumelo desconhecido, pergunta-se ao José Matos e ele identifica-a. Na Quinta Vale d’Encantos já foram identificadas mais de 500 espécies de cogumelos.
Quando regressou ao Alcaide, há cerca de 20 anos, o Sr. José Matos florestou a quinta com várias espécies de árvores, o que proporcionou um habitat natural para os cogumelos. A quinta é uma espécie de reserva natural, mas, infelizmente, foi vítima do incêndio que houve este ano aqui no Alcaide. Se calhar, se tivermos uma reserva natural, com determinadas regras ou restrições de acesso, conseguíamos proporcionar fluxo necessário para abastecer o mercado através da Casa do Cogumelo. Mas, para isso, é preciso haver uma concertação e esforços entre várias entidades, o que ainda não acontece. Mas estamos todos a trabalhar para isso e estamos confiantes que vamos conseguir.

@iNature | Quinta Vale d'Encantos.