Fundadora da Sociedade Portuguesa de Ecologia e Presidente da Liga Para a Proteção da Natureza entre 1999 e 2002, Helena Freitas é uma das maiores especialistas e ativistas portuguesas em matéria de ecologia e conservação da natureza. Atualmente, divide-se entre a Direção do Parque da Fundação de Serralves, a docência na Universidade de Coimbra, onde é Professora Catedrática na área da Biodiversidade e Ecologia, e as inúmeras funções que ocupa em entidades nacionais e internacionais. Recebeu a iNature em vésperas de mais uma viagem à sede da UNESCO, em Paris, onde coordena a Cátedra em Biodiversidade e Conservação para o Desenvolvimento Sustentável.
Numa conversa iniciada com base nas conclusões do relatório “Biodiversidade 2030 – Nova Agenda para a Conservação em Contexto de Alterações Climáticas”, abordou as causas do que considera um “falhanço total” da conservação da natureza e biodiversidade em Portugal. “O país nunca teve uma política de conservação da natureza efetiva”, diz, apontando a inconsistência de um Estado que afirma centralista e distante. Aponta soluções.
Numa segunda parte da conversa, tenta, mas não consegue esconder a tristeza com os estragos do ainda quente incêndio na Serra da Estrela. “O que aconteceu ali foi gravíssimo”, exclama. Entramos no campo do ordenamento do território e do papel da natureza como instrumento de valorização dos territórios do interior. Sabe do que fala. Foi coordenadora da Unidade de Missão para a Valorização do Interior criada pelo XXI Governo Constitucional do Governo de Portugal.
O relatório “Biodiversidade 2030 – Nova Agenda para a Conservação em Contexto de Alterações Climáticas” publicado em maio sublinha o pioneirismo de Portugal na criação de áreas protegidas, mas conclui que o país tem vindo, sistematicamente, a perder biodiversidade. Porquê?
Eu diria que enquanto foi possível conservar territórios, em que não havia propriamente uma apetência para um desenvolvimento mais predador dos recursos, não foi preciso grande intervenção e organização do Estado, bastava tê-los, contemplá-los e identificá-los no mapa. Esta fase de identificação e de um nível básico de organização foi bem conseguida, onde nós falhámos foi depois na organização e criação de uma estrutura que verdadeiramente responsabilizasse o Estado ao mais alto nível por uma conservação efetiva desses territórios, o que significava, antes de mais, colocar lá recursos. Há medida que as ameaças foram crescendo, o país não se organizou para ter uma efetiva política nacional de conservação da natureza.
Faltou determinação?
O país nunca teve uma política de conservação da natureza efetiva. Eu diria que só nos anos 1990, pela mão de Joaquim Marques Ferreira, uma figura que aliás morreu recentemente e que não teve o reconhecimento devido, é que tentámos construir uma política nacional de conservação da natureza. A estruturação que ele fez do Instituto da Conservação da Natureza (ICN) foi fundamental. No entanto, daí para a frente, a conservação da natureza foi sempre uma política pobre e a última das políticas do Estado, sempre muito circunstancial e nunca dotada dos recursos financeiros e humanos necessários.
O Estado não deu prioridade ao que deveria ser uma política de gestão do território com uma ligação próxima à ciência e ao conhecimento. Hesitou-se sempre muito e houve sempre uma enorme fragilidade nesse tipo de concertação, e a relação com as comunidades falhou desde o início. Não houve o cuidado de as envolver e de desenvolver literacia para que as pessoas se sentissem agentes do desenvolvimento da conservação. A ação foi sempre feita de cima para baixo e nem sempre de forma transparente e aberta. A conservação da natureza sofreu muito deste pecado. E só não foi pior porque fomos estimulados, tivemos que transpor algumas diretivas comunitárias que nos obrigaram a preparar e a organizar, refiro-me por exemplo à Rede Natura 2000.
"O Estado não deu prioridade ao que deveria ser uma política de gestão do território com uma ligação próxima à ciência e ao conhecimento. Hesitou-se sempre muito e houve sempre uma enorme fragilidade nesse tipo de concertação, e a relação com as comunidades falhou desde o início."
Mas neste campo da aproximação, houve uma tentativa quando se criaram as delegações regionais do ICNF.
Admito que sim, mas não produziu efeitos e o que se conseguiu é muito desequilibrado.
No presente, olhando para estrutura, os recursos e o conhecimento que temos, podemos olhar de cabeça erguida para as metas de conservação da biodiversidade até 2030?
Claramente que não e isso ficou evidente este ano, quando perdemos 30% da maior área protegida do país. Isso tem de ter um reconhecimento muito claro da nossa incapacidade para conservar a biodiversidade. Podemos arranjar os bodes expiatórios que quisermos e vamos aguardar o relatório, mas não tenho dúvidas que falhámos. Nós nem sabemos qual o ponto de partida, porque sabemos de um modo geral que perdemos biodiversidade, como conclui o relatório, mas não temos um programa de monitorização com a consistência e com o conhecimento que é exigido para poder afirmar em rigor se perdemos 10%, 20% ou 30% da biodiversidade. Não há métricas de avaliação.
Mas vejo a falha como geral, global. Do ponto de vista das metas universais, das metas de Aichi – objetivos estabelecidos pelo Plano Estratégico de Biodiversidade aprovado durante a Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (COP-10), em Nagoya, Japão - houve um incumprimento quase total e transversal a todos os países. Agora empurraram-se para 2030 alguns dos objetivos que deviam ter sido alcançados até 2020. Vamos ver, é outro processo que está em curso.
"O capital natural é o capital do século XXI, é o futuro e nós temos de olhar para ele como tal."
É necessário criar mais áreas protegidas em Portugal?
Neste momento não preconizo a necessidade de criar mais áreas protegidas, mas sim de perceber e valorizar o que temos. Todo o território deve ser visto como um valor em si mesmo. Isto não significa que deseje transformar Portugal num gigantesco parque natural ou área protegida, mas a abordagem conservacionista deve ser geral, global, porque temos o interesse em conservar os recursos e minimizar as perdas e o desperdício. É a lógica da circularidade que conhecemos bem. O capital natural é o capital do século XXI, é o futuro e nós temos de olhar para ele como tal.
A conservação da natureza deve ser responsabilidade exclusiva do Estado ou pode-se abrir a gestão ao setor privado?
Acho que é importante que o Estado seja indutor de boas práticas, não só na conservação da natureza, mas em todos os setores da economia. O Estado deve ditar um conjunto de linhas orientadoras e depois deve avaliá-las. Não vejo problema algum em que uma entidade privada, de acordo com determinadas linhas orientadoras, contratualize com o Estado essa missão, não vejo aí nenhum problema. O Estado deve é depois monitorizar e avaliar se está a ser bem feito.
O relatório aborda também o subfinanciamento crónico da política de proteção e conservação da natureza. Entradas pagas, como se faz em alguns parques naturais no estrangeiro, podia resolver ou atenuar esta carência?
Sem dúvida. Existe um conjunto de áreas protegidas, que são também territórios privados, em que o Estado não consegue intervir, porque o diálogo é difícil e não tem a eficácia que devia, o que depois leva a que as pessoas que estão naquela área protegida recusem a autoridade do Estado.
Há falta de legitimidade do Estado na gestão das áreas protegidas?
Sim. Muitas vezes nem se sabe que se está numa área protegida. O que é que a identifica? As áreas protegidas deviam ser bons exemplos de intervenção no território. O Estado devia dar prioridade à conservação da natureza e ajudar a construir os planos de desenvolvimento económico desses territórios com base, exatamente, na conservação da natureza. Não tenho dúvida que o turismo é um agente muito importante do desenvolvimento destes territórios, sempre foi, e será ainda mais no futuro. No momento em que o Estado fizer uma intervenção consistente e boa e nestes territórios que estão conservados, tornando-os bons exemplos para o resto do país, estamos no bom caminho. O que acontece hoje é que o Estado não intervém, não está presente, e depois também não tem coragem para tolerar e organizar.
"O Estado devia dar prioridade à conservação da natureza e ajudar a construir os planos de desenvolvimento económico desses territórios com base, exatamente, na conservação da natureza."
Falta uma gestão mais ativa, como conclui também o relatório?
Houve e há uma clara falência da intervenção do Estado na proteção das áreas protegidas. Salvo um ou outro caso, como no Gerês, por exemplo, onde houve algum investimento, na maior parte dos territórios fez-se pouco. Não há nada que identifique o Estado e a missão do Estado naqueles territórios. Por exemplo, na Serra da Estrela, como é que se identifica a missão conservacionista do Estado? Em lado nenhum. Quem é que assume verdadeiramente essa missão naquele território em nome do Estado?
A gestão e valorização da floresta
Entrando no campo do ordenamento do território e da floresta, surgiram recentemente alguns modelos de gestão que vão ao encontro da “aproximação às pessoas”, como defende, ao delegar parte da gestão em entidades locais. Como é que vê estes novos modelos? Acredita que venham a produzir melhores resultados?
Embora sejam apresentados como novos, não são. As Reservas da Biosfera lançadas pelo Comité MAB (Man and Biosphere), que tem 50 anos, já abordava a cogestão ao propor o zoneamento dos territórios, dividindo-os em áreas para a conservação da natureza e áreas para a intervenção das comunidades, e com um modelo de gestão escolhido por estas. Ou seja, é preciso desmistificar isto. A cogestão aparece agora como uma panaceia que vai resolver o problema, mas não vai. Só vai resolver o problema se nós o quisermos resolver.
Admito que o modelo de cogestão, por ser um modelo em que há uma intervenção de todos os agentes do território - os municípios, as associações de desenvolvimento local, as ONG, etc – seja positivo. Há todo o interesse em valorizar a participação dos cidadãos, sempre e em todas as circunstâncias. O futuro passa por modelos de gestão do bem público e comum onde os cidadãos têm uma participação ativa.
Mas houve tentativas menos bem conseguidas. Refiro-me ao convite do Estado ao associativismo na gestão da floresta através da criação de Zonas de Intervenção Florestal (ZIF). Porque é que não funcionou neste caso?
Tenho conversado com pessoas ligadas a esse tema. Uma delas é o professor Américo Mendes, economista da Universidade Católica do Porto, que até dirige uma ZIF, e o que ele me diz é que o insucesso se deve à inconsistência das políticas do Estado. Eu sou muito favorável à ideia do associativismo e entendo que é a melhor forma de organização para a gestão florestal, mas é preciso que o Estado seja firme num conjunto de políticas que mitiguem o elevado e crescente risco do negócio. Se um grupo de proprietários se junta numa associação para gerir um conjunto de hectares de floresta com o objetivo de gerar dinheiro e tornar a floresta sustentável, essa associação tem que ser ajudada pelo Estado na sua fase inicial até conseguir produzir valor de mercado, e isso não acontece devido à inconstância das políticas do Estado.
"O futuro passa por modelos de gestão do bem público e comum onde os cidadãos têm uma participação ativa."
As pessoas não colaboram mais nas políticas porque não acreditam no Estado como parceiro?
O Estado falha muito. As estruturas do Estado não têm extensão. Os serviços florestais estão a dormir em Lisboa e assim não é possível. Centralizar a gestão do território, desacredita. Não foi por acaso que durante décadas o país teve serviços de gestão ativos nos territórios. O Estado tem que ajudar a produzir valor e estimular os agentes que podem auxiliar no encontro de soluções. Sem este papel, ficamos cingidos a alguns casos pontuais onde um autarca ou um município, através de uma agenda contraditória mas consistente, têm conseguido criar valor nos territórios. Mas para que estes casos aconteçam é preciso um gasto de energia permanente, o que os torna cada vez mais pontuais.
Se queremos que a floresta seja um recurso que realmente crie valor nos territórios, temos que assegurar que é possível criar densidade, identificar os proprietários e assegurar que estes disponibilizam os terrenos para as soluções validadas e aplicadas pelo Estado de forma a mitigar o risco de incêndio e transmitir a confiança.
Foram criados vários programas e novas entidades, como a AGIF – Agência para Gestão Integrada dos Fogos Rurais -, com a função de mitigar o risco de investimento na floresta e o Plano de Recuperação e Resiliência prevê um forte investimento na floresta. Estamos num bom momento para inverter a tendência?
A AGIF foi constituída com uma intenção e princípios nobres. Contribuiu para o aumento da perceção do risco, procurou envolver as comunidades e colocou o enfoque na prevenção dos fogos rurais. Trouxe um novo corpo de valores muito interessante, mas fiquei algo apreensiva com uma entrevista recente do Tiago Oliveira – Presidente do Conselho Diretivo da AGIF-, onde ele, de alguma forma, demonstra o seu desalento. Pelo que percebi, ainda não se conseguiu consenso sobre a própria gestão, organização e governança da AGIF, o que é preocupante.
No Plano Nacional de Coesão Territorial, onde tive a oportunidade de participar, incentivei o cadastro simplificado e a criação o Balcão Único do Prédio - BUPi, que foi lançado em 2017, mas, pelo que leio, cinco anos depois, a norte do Tejo, nem 20% dos terrenos temos registados. Não pode ser. Estamos numa emergência permanente, temos que acelerar. Os pacotes financeiros são importantes, mas têm de ser consistentes. Não podemos ter hoje uma política e amanhã outra. O que parece, é que do ponto de vista do combate aos fogos, estamos mais capacitados, temos mais capacidade de resposta, apesar de faltar resolver algumas questões como os recursos humanos e a situação dos bombeiros, entre outros. Há um caminho a ser feito, que continue a ser feito. As pessoas já têm outra perceção do risco, é preciso continuar a trabalhar e a apoiar estes caminhos positivos. Temos que ter coragem para fazer o que sabemos que tem de ser feito.
"Em França, se ninguém reclamar um terreno durante três anos, ele reverte para o Estado. Tenhamos coragem para fazer estas coisas."
Refere-se ao cadastro predial rústico?
Por exemplo. É preciso resolver o problema das heranças indivisas dos terrenos. Cerca de 30% dos territórios permanece nessa condição, anónima. Tem de se fazer o que foi feito noutros países e que não é sequer novidade ou inovação. Em França, se ninguém reclamar um terreno durante três anos, ele reverte para o Estado. Tenhamos coragem para fazer estas coisas. Portugal tem que tomar uma série de medidas que estão ou já foram tomadas por outros países. O caminho que se está a fazer é positivo, mas temos que andar mais depressa, no caso do cadastro e não só.
Há também a questão do arrendamento coercivo das terras…
Criemos esses mecanismos. Do ponto de vista legal há muito para fazer e o nosso problema por vezes é adiamento permanente de situações que sabemos que temos que resolver.
É uma tarefa e uma reforma complexa.
Sim, mas todo o setor florestal carece de reforma. O setor florestal tem que fazer uma profunda introspeção, porque é evidente para toda a gente que o valor que hoje é produzido pela floresta está a diminuir. A fileira florestal tem que se organizar e perceber qual a melhor situação para o seu futuro.
É preciso encontrar novas formas de valorizar a floresta.
Sim, como por exemplo, através da valorização dos ecossistemas.
Mas se os problemas estão identificados, como é que se inverte o caminho?
Temos que olhar para o problema e encontrar soluções de valor para esses territórios. Os municípios têm feito uma grande intervenção na tentativa de valorizar a paisagem, com os passadiços, as praias fluviais e a recuperação de edifícios, por exemplo. Estas intervenções, em que os municípios se substituem ao Estado, fazem com que prevaleça uma ideia de que aquele é um território preservado e isso cria valor.
"As pessoas começam a valorizar mais a paisagem, a qualidade do ar, da água, e os agentes locais já sabem que estes territórios têm no longo prazo, do seu potencial de diferenciação e de solução para o desenvolvimento local."
Já existe a perceção que a floresta e a paisagem vale mais do que o seu peso em madeira?
A identificação das áreas protegidas conseguiu que exista hoje uma perceção inequívoca dos valores naturais e da natureza. É o resultado positivo do trabalho realizado ao longo das últimas décadas. É verdade que ainda têm algum receio de ter uma área protegida “à porta”, pelos motivos já falados, mas também a consciência que essa proteção inibe intervenções que poderiam ser mais perversas e que há dinâmicas de desenvolvimento associadas à preservação, ao conhecimento tradicional e ao legado histórico. As pessoas começam a valorizar mais a paisagem, a qualidade do ar, da água, e os agentes locais já sabem que estes territórios têm no longo prazo, do seu potencial de diferenciação e de solução para o desenvolvimento local. Antes, os territórios conservados não faziam parte da equação do desenvolvimento, mas hoje fazem e isso é muito positivo. E é aqui que se tem de trabalhar e o Estado tem que ajudar enquanto indutor desta fórmula que faz sentido para as pessoas e para os territórios.
Qual o papel que uma organização como o PROVERE iNature pode ter no contexto da valorização e preservação da natureza da Região Centro do país?
Ter uma organização que regionalmente quer cuidar e valorizar a natureza é, por muito pequeno que seja, um movimento contraditório que temos que ter. Acho fantástico terem criado este instrumento regional, porque é um indutor de investimentos públicos num sentido que vamos ter que fazer. Se tem força para mudar o rumo geral das coisas, provavelmente, não, mas é mais um passo nesse sentido e é nessa direção que temos que caminhar.
@iNature