João d’Eça Lima pôs a aldeia da Louçainha no mapa nacional do turismo e transformou a esplanada de uma praia fluvial num restaurante de referência da gastronomia do centro do país. Conheça os ingredientes do sucesso do restaurante Xisto e as ideias do seu fundador para dinamizar o turismo na Serra da Lousã.
Cabrito, chanfana, cabidela. Embora sejam pratos de reconhecido valor da gastronomia do centro do país, se está à espera de os encontrar na cozinha do chef João d’Eça Lima, esqueça. Embora lhe tenham dito que era este o receituário para o sucesso do restaurante Xisto, não acreditou. “Sempre procurei um contexto histórico, cultural e etnográfico na cozinha”, explica.
A história está-lhe no sangue, não fosse esta a disciplina que lecionou durante 16 anos, antes de decidir mudar de vida e abraçar a gastronomia. Mas, a irreverência, também. Dito e feito. Há cerca de dois anos, quando inaugurou o restaurante “Xisto”, uma das primeiras iguarias disponíveis foi “pernas de rã”. “Numa semana vendemos nove quilos”, diz, a rir. Em março de 2020, quando foi obrigado a encerrar devido ao contexto pandémico, a lista de espera do restaurante Xisto tinha 140 pessoas.
Através do marketing à Louçainha, o chef acabou por dar a conhecer o restaurante Xisto.
Natural de Lisboa, João d’Eça Lima cedo se radicou no centro do país, mas a aldeia da Louçainha, Serra do Espinhal, dizia-lhe pouco no dia em que se cruzou com a proposta da Câmara Municipal de Penela para a concessão do “bar” da praia fluvial local. “Já lá tinha ido algumas vezes em piqueniques com a família, mas apesar de ser adepto de praias fluviais, nunca tinha frequentado a da Louçainha”, confessa. Ainda assim, após estudar o potencial do local, decidiu arriscar. “Foi uma decisão difícil, com um pouco de loucura até, mas era um local por desbravar e eu vi ali uma oportunidade”, justifica.
O Restaurante Xisto fica na Praia Fluvial da Louçainha, na Serra do Espinhal, Lousã. Saiba qual o melhor caminho para lá chegar.
Na opinião do chef, num local isolado como a praia fluvial da Louçainha, o combate à sazonalidade e a fidelização dos clientes eram os ingredientes fundamentais para o sucesso do negócio e ali perto, nas imediações do Castelo de Arouce e da Ermida da Nossa Senhora da Piedade, na Lousã, a estratégia seguida pelo restaurante “Burgo” era um exemplo a seguir. Porém, antes do restaurante, era preciso “por a Louçainha no mapa”. “Em Coimbra, Aveiro ou no Porto, ninguém conhecia a Louçainha. Acho que nem as gentes de Castanheira de Pera, aqui a 20 minutos de distância, tinham conhecimento deste local”, diz.
Com uma beleza natural característica da Serra da Lousã, próxima de locais emblemáticos e dotada de um parque de merendas e uma praia fluvial, não foi difícil “vender” o espaço na comunicação social e nas redes sociais ao mesmo tempo que foi desenvolvendo uma rede de parcerias com os alojamentos locais e os agentes de animação cultural e turística de região. Em jeito de promotor, João d’Eça Lima organizou noites de observação de estrelas - uma parceria com o Centro de Ciência Viva de Coimbra -, noites de fado, passeios micológicos e outras atividades que tornassem o local atrativo e os resultados foram surgindo.
“Começámos a ter um conjunto de pessoas que vinham descobrir o sítio e, por consequência, descobriam o restaurante”, diz o chef do restaurante Xisto, sublinhando que, no primeiro mês de janeiro passado na Louçainha, houve dois fins-de-semana em que o espaço acolheu cerca de 500 pessoas. Ou seja, a sazonalidade, o mal que tinha dado origem ao encerramento do espaço onde está hoje o restaurante Xisto começava a resolver-se. Todavia, era ainda necessário fazer com que as pessoas regressassem ao local.
A elevada procura recomendam um telefonema e a prévia reserva, que poderá ser feita por telefone através do número 239 012 296.
No setor da restauração, a disponibilidade, a qualidade e a hospitalidade constituem o tripé fundamental do sucesso do negócio, e foram esses os temperos que João d’Eça Lima adicionou à comunicação e às parcerias que colocaram a Louçainha no mapa. Onde antes estava um bar aberto apenas na época balnear, passou a estar um restaurante disponível para almoços de quarta-feira a domingo, no inverno, e de terça-feira a domingo, no verão. E jantares aos sábados. Porém, com este horário, o chef, agora na pele de gestor, sabia que tinha pela frente um desafio de gestão, tanto da equipa como dos custos.
“Sabia que teria aqui o triplo do trabalho de um restaurante normal, sobretudo porque o cliente não passa à porta”, explica. Mas tal não o demoveu. Optou por um modelo de “reserva” obrigatória, para tornar a gestão dos custos variáveis mais eficiente e decidiu não “rodar mesas”. Ou seja, o restaurante Xisto serve tantas refeições quantos os lugares que tem, dando tempo aos clientes para usufruir do repasto sem pressões.
“Eu não posso servir javali com castanhas quando os castanheiros em frente ao restaurante não têm castanhas porque não é a época delas”.
“Aqui, uma refeição pode durar mais de três horas”, diz, sublinhando a sua apologia pelo “Slow Food”, conceito ao qual o restaurante Xisto está associado através da Slow Food Portugal. Mais do que a tradução à letra, o conceito “Slow Food” assenta na filosofia de que é possível oferecer uma restauração de qualidade para o consumidor, para o produtor e para o planeta. E é a partir desta filosofia que se desenvolve toda a gastronomia do restaurante Xisto.
No restaurante Xisto, os pratos disponíveis acompanham as estações do ano e os produtos, salvo raras exceções, são locais, sempre frescos e adquiridos pessoalmente pelo chef. O pão, o azeite, os enchidos e o vinho são originários de pequenos produtores locais, o queijo é do Rabaçal, a carne é marinhoa, raça dos bovinos criados nas margens dos rios da Beira Litoral, e o peixe vem da Figueira da Foz.
Em termos geográficos, o restaurante Xisto caracteriza-se por uma gastronomia compreendida entre a Figueira da Foz e a Sertã e um estilo entre o popular e o senhorial. Na carta do restaurante Xisto que irá vigorar entre maio e junho, por exemplo, será possível começar com umas
rústicas ervilhas com toucinho e terminar com um requintado Pudim da Viscondessa, um pudim de ovos com limão servido numa redução de Licor Beirão. Tudo, sempre de acordo com a época.
“Eu não posso servir javali com castanhas, quando os castanheiros em frente ao restaurante não têm castanhas porque não é a época delas”, justifica. Os “pratos de azeite”, como o bacalhau à lagareiro, por exemplo, são servidos na época da colheita da azeitona e da produção do azeite locais, e acompanhados por uma prova destes produtos. Já o cozido à portuguesa, acompanhado por uma prova de 32 enchidos de pequenos produtores da região, é servido na carta de inverno.
Mais do que de barriga cheia, a intenção do chef é que os clientes levem do restaurante Xisto uma experiência da gastronomia e dos produtos locais de acordo com estação do ano. E, claro, que levem vontade voltar, o que tem acontecido. A procura é tanta que para ser servido pelo chef João d’Eça Lima é recomendável reservar com pelo menos duas semanas de antecedência.
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Tal como a dos seus congéneres, a atividade do restaurante Xisto foi interrompida pelo contexto pandémico e num negócio com menos de um ano, foi um choque. “Estávamos em crescendo, começávamos a ser falados e a ter clientes quando isto acontece. É muito difícil”, diz. Sem hipóteses de vender para fora devido ao isolamento do local, o chef viu-se obrigado a encerrar o estabelecimento à espera de melhores dias. “O estrago não foi maior porque nunca demos um passo maior que a perna”, explica. A esperança da chegada de melhores dias concretizou-se no verão passado, considerado muito bom, mas a confiança era pouca. “Sempre tive na ideia que iríamos encerrar outra vez e tinha que estar preparado”, confessa, acrescentando que evitou investimentos e acumulação de stocks, e preparou a equipa e os fornecedores para o que pensava que aí vinha. “Felizmente, toda a gente compreendeu. Afinal, embora em barcos diferentes, estamos todos no mesmo mar”, desabafa.
Passada a “tempestade de inverno”, e apesar do sucesso do próximo verão estar dependente da evolução da situação sanitária dos próximos meses, o chef do restaurante Xisto encara o futuro próximo com otimismo. Na sua ótica, as mudanças que a pandemia gerou no comportamento e nas preferências das pessoas pode ser uma oportunidade para o turismo do centro do país. “Houve uma alteração gigantesca do público que nos visita”, diz, explicando que quem ia para o Algarve vê agora no interior uma solução mais adequada ao contexto sanitário, devido à menor densidade do turismo e às características dos alojamentos, mas deixa um aviso. “São pessoas mais informadas e com maior capacidade financeira, mas também mais exigentes”, afirma, o que se traduz numa oportunidade para a região, mas também num desafio. E é aqui que o chef tem alguns receios.
“Nós temos aqui uma mina de ouro, mas se não fizermos o trabalho necessário, ela irá esgotar-se em dois ou três verões”.
“Há todo um trabalho de casa que devia estar a ser feito, mas eu não vejo isso”, diz, indicando a falta de redes de telecomunicações, wi-fi e informação. “E não me refiro à informação dos postos turísticos, mas sim a informação prática em tempo útil, que diga a uma família que vem passar uns dias à região, o que ver, fazer, comer e vivenciar”, exclama. “Eu chego a um hotel no Algarve e sou inundado de panfletos com atividades. E aqui? Aqui, há restaurantes e uns trilhos para fazer. É pouco”, defende.
Para o empresário, é preciso criar uma oferta integrada de atividades que convençam as pessoas permanecer na região mais do que um par de dias. “Levá-las aos lagares, para lhes mostrar como se faz o azeite, a ver as colmeias e como se faz o mel, pô-las a fazer queijo e a pastorear os animais, e quem lhes conte e mostre as estórias e as tradições por trás dos enchidos. As pessoas querem viver isto”, exemplifica, referenciando as conversas que os clientes lhe fazem no restaurante.
Na base desta ausência, João d’Eça Lima aponta a falta de empreendedorismo. A sazonalidade característica do turismo do interior torna o investimento arriscado e de retorno moroso, mas na sua opinião, “era, agora não é. Agora nós sabemos que o público está a migrar para aqui”, exclama, adiantando que o comportamento defensivo em termos sanitários não vai desaparecer tão depressa e que até lhe têm chegado aos ouvidos intenções de aquisição de habitação para férias.
Segundo o empreendedor, as entidades existentes têm feito um bom trabalho como dinamizadores e promotores de uma ideia integrada numa lógica, mas não são empreendedoras por natureza, precisam de alguém que o seja. “É preciso dar o salto”, exclama, defendendo a ideia da criação ou a dotação de uma entidade existente de capacidade para incentivar o empreendedorismo e organizar os vários agentes numa espécie de clusters regionais que respondam à procura destes novos públicos. Se este passo não for dado, o gestor teme que a região não consiga aproveitar a oportunidade escondida por trás da atual crise. “Nós temos aqui uma mina de ouro, mas se não fizermos o trabalho necessário, ela irá esgotar-se em dois ou três verões”, remata o chef e fundador do restaurante Xisto.