Dulcineia Catarina Moura, com o Grande Vale do Côa do horizonteDULCINEIA CATARINA MOURA:"HÁ OPORTUNIDADES NAS NOSSAS VULNERABILIDADES"

É uma mulher de vários ofícios. Doutorada em Economia, é professora universitária, investigadora, consultora de empresas, deputada na Assembleia Municipal da Guarda e na Comunidade Intermunicipal das Beiras e Serra da Estrela, mas foi na condição de Coordenadora Executiva da Associação de Desenvolvimento Regional Territórios do Côa, que a iNature foi falar com ela. Em Almeida, no Picadeiro D’el Rey, onde nos recebeu, Dulcineia Catarina Moura falou-nos sobre os projetos e os desafios da Associação e da região. Aponta a necessidade de maior cooperação e comunicação entre os agentes do território, e indica os caminhos a seguir para a região se impor no mapa do turismo nacional. Assumiu-se uma ativista pelo interior e não esconde as suas ambições. “Tenho a aspiração de fazer mais e melhor pelo meu território”, diz.

Onze anos de existência. Qual o balanço que faz destes anos da atividade da Associação de Desenvolvimento Regional Territórios do Côa?
É um balanço positivo, sobretudo, pela capacidade de resiliência, e de superação dos desafios que, constantemente, nos têm surgido ao longo destes anos. Outros, se calhar, não conseguimos ultrapassar, mas ainda nos mantemos por aqui, o que significa que o balanço só pode ser positivo.

Do que foi feito, houve algum projeto do qual se orgulhe em particular, pelo impacto que tenha gerado na região?
Sim, a definição de uma estratégia que consistiu em falar do território do Grande Vale do Côa a uma só voz. O Grande Vale do Côa passou a ter uma representação e uma marca de identidade territorial. Julgo que foi aí que conseguimos fazer a diferença. Conseguiu-se imprimir dinâmicas de animação e de eventos, alguns tiveram uma forte adesão das comunidades locais e que reforçaram o apelo ao território, o sentimento de pertença. Tem sido um trabalho muito gratificante.

"Os municípios têm que ser agentes facilitadores e articuladores de uma política local, mas também não é suficiente. É necessária uma política nacional para vencer o desafio da desertificação humana do interior do país."

A região do Grande Vale do Côa, à semelhança da maioria das regiões do interior do país, tem um grave problema de desertificação humana. Conseguiu dar passos no sentido contrário a esta tendência?
O combate ao flagelo da desertificação humana não depende da Associação. No entanto, no que concerne ao aumento da atratividade do território, da criação e promoção de novas dinâmicas, de chamar à atenção para uma região que é inspiradora, acolhedora, e que pode ser o palco de vivência e convivência de jovens casais, novos residentes, fizemos o nosso trabalho. Sei que o que fizemos não é suficiente, porque tem que existir uma política territorial e uma reforma da forma de pensar, mas isso já extrapola o nosso campo de ação. Diria até que extrapola também o campo dos municípios que, isoladamente, pouco podem fazer. É necessária uma política nacional para vencer o desafio da desertificação humana do interior do país.

NOVAS ROTAS A CAMINHO

A Grande Rota do Vale do Côa, um dos vossos projetos mais emblemáticos, está em requalificação. Como está a correr o processo?
Está quase concluído. Estamos apenas a aguardar o fim da avaliação com vista à homologação do percurso pedestre, para depois ativarmos o mecanismo de gestão e manutenção permanente de todo o traçado. As mensagens que nos chegavam dos utilizadores diziam que o percurso não estava uniformemente limpo e tratado, apesar dos nossos esforços junto dos cinco municípios que são atravessados pelas várias etapas que compõem a Rota, daí sentirmos a necessidade de implementar um modelo de gestão que contribua para que o percurso esteja harmoniosamente limpo e tratado ao longo de todo o ano. Este mecanismo deverá estar ativo nos próximos dois meses, mas sobre o término do processo de requalificação não consigo avançar uma data porque depende da entidade de homologação. Mas, a Rota está operacional e pode ser usufruída.

A Rota Turístico Literária Viagem do Elefante vai ligar Lisboa à região do Grande Vale do Côa. Inspirada na obra de José Saramago é um projeto alicerçado em instrumentos tecnológicos - terá uma app e um portal -, indo ao encontro do conceito "Destino inteligente".

Em 2021 lançaram a Rota Turístico Literária Viagem do Elefante. Em que fase está este projeto? Pode falar-nos um pouco dele?
É um projeto que estamos a abraçar com grande paixão. Já temos muitos procedimentos adjudicados. As pessoas ainda não conseguem ver o trabalho realizado, mas já há muito trabalho em curso. A Rota Turístico Literária Viagem do Elefante está muito alicerçada na tecnologia, o que nos obriga a trabalhar muito bem a questão dos conteúdos e de todo o suporte comunicacional. É uma Rota que vai ligar Lisboa à região do Grande Vale do Côa através de uma app que estará sustentada num portal. Terá também elementos físicos, cuja definição partirá sempre do envolvimento das gentes locais e irá socorrer-se da gamificação, um mecanismo que corresponde às novas tendências, os chamados "destinos inteligentes". Julgo ser uma forma harmoniosa de ligar turismo e a promoção do turismo literário à tecnologia. Quando à obra, tentámos ligar a inspiração do autor com a afetividade que a obra tem com os territórios do Grande Vale do Côa. Para isso, foi feito um trabalho prévio, como o foi o caso da estreia internacional da peça de teatro “A Viagem do Elefante”, realizada aqui, o que nos leva a afirmar que a nossa comunidade conhece muito bem a obra de José Saramago e, em particular, “A Viagem do Elefante”.

O Grande Vale do Côa está inserido em duas regiões administrativas, o norte e o centro. Do ponto de vista da organização, como é que tem lidado com esta realidade e como é que antevê este desafio nos projetos futuros?
Tenho consciência desse enorme desafio, até porque já houve constrangimentos originados por essa situação no passado. Todavia, a resolução desse desafio não parte de nós. A Associação está cá para responder ao legado que a natureza nos deixou. O Grande Vale do Côa e o rio Côa, que é o ativo que mais nos tem mobilizado, nasce em Fóios e desagua em Vila Nova de Foz Côa, e essa ligação nós não podemos cortar. Há que pensar este desafio estrategicamente. Nós queremos promover uma marca territorial mas, no fundo, estamos a promover Portugal. Temos de pensar de forma estratégica e acabar com estes condicionamentos que são os limites administrativos territoriais.

O Grande Vale do Côa é uma região frequentemente apontada como um exemplo na área da renaturalização, e refiro-me ao projeto da Rewilding. Como é que coaduna um projeto destes, que valoriza a retirada da vertente humana, com a necessidade do combate à desertificação humana?
Tem que se considerar os dois desideratos. Deve preservar-se a natureza e o projeto Rewilding tem feito um trabalho meritório, porque está a concretizar uma missão que é uma oportunidade. Afinal, o projeto da Rewilding é uma oportunidade gerada pela lamentável desertificação humana. Mas entendo que foi pensamento estratégico. Há oportunidades nas nossas vulnerabilidades e temos que as aproveitar. É o que se passa agora nos territórios de baixa densidade populacional que, de repente, ganharam valor perante o contexto pandémico.

AS OPORTUNIDADES DO GRANDE VALE DO CÔA

A pandemia, apesar das dificuldades que trouxe a vários níveis, pode ser vista como uma oportunidade?
Pode e deve. A pandemia afetou muito as nossas vidas, mas as pessoas querem continuar a ter os seus momentos de lazer, a desfrutar as suas férias e a ter uma vida o mais normal possível. E o território do Grande Vale do Côa tem todas as condições para dar garantias de segurança e confiança a quem nos visita.

"O português não tem o hábito de se preparar e esse tem sido um grande problema para o país. Nós temos dificuldade em antecipar e criar condições de sustentabilidade. Espero que desta vez não se repita, e que o investimento que foi e está a ser feito ao nível do alojamento e da requalificação da oferta turística não se venha a perder."

O interior “roubou” turistas aos destinos massificados, em particular, ao turismo de praia. Acha que vamos conseguir manter esta tendência?
Sim, se colocarmos uma inteligência coletiva em prática. O português não tem o hábito de se preparar e esse tem sido um grande problema para o país. Nós temos dificuldade em antecipar e criar condições de sustentabilidade. Espero que desta vez não se repita, e que o investimento que foi e está a ser feito ao nível do alojamento e da requalificação da oferta turística não se venha a perder. Há muita coisa a fazer para que tal não venha a acontecer. Uma delas é atrair gente para trabalhar no território. No verão passado, por exemplo, havia interesse e vontade por parte dos turistas, mas não havia capacidade de resposta, por exemplo, na restauração. É aqui que os municípios podem intervir, criando condições atrativas ao nível do emprego. 

Mas há alguns programas em curso, como é o caso do programa Emprego Interior MAIS.
É insignificante. Li que conseguiu convencer 44 pessoas desde que foi lançado, há pouco mais de um ano. Sempre que se convencer uma família, é bom. Mas é pouco.

Livro "Pensar o Interior", de Dulcineia Catarina MouraNo livro "Pensar o Interior" aborda muitas vezes o tema da inovação. Depois de tudo o que foi e está a ser feito, “a roda não está já inventada”? Onde é que ainda falta inovação?
Nós podemos inovar sempre e às vezes basta uma pequena inovação para fazer uma grande diferença. Podem-se criar mecanismos de experiência personalizada ao turista e ao visitante, podemos inovar com a criação de novos produtos, alguns derivados de uma maior cooperação, que eu diria ser uma inovação por si só, de forma a articular os vários agentes do território para a criação de produtos que levem à visita de vários concelhos e assim contribuir para o aumento do tempo de estada no território. Isto é uma coisa que não se vê amiúde.

Isso é estruturação do produto?
Sim, mas podemos também inovar ao nível do marketing e da comunicação. É fundamental sabermos comunicar na perspetiva do marketing para conseguir criar produtos apelativos e competitivos nos mercados turísticos a uma escala cada vez mais alargada. É sobretudo a este tipo de inovação que me refiro e não tanto à inovação tecnológica, embora tenha que existir um alinhamento do nosso território com as novas tendências tecnológicas. Por exemplo, a tecnologia é um instrumento muito importante na monitorização da atividade turística do Grande Vale do Côa. Temos que saber quantos são e qual o seu perfil para dar respostas satisfatórias e melhorar a experiência de quem nos visita.

Mais comunicação e mais cooperação são então os conceitos que entende serem fundamentais para o desenvolvimento turístico e regional, no geral?
Eu diria “melhor comunicação e cooperação entre os agentes do território”. Nós não conseguimos inovar sem cooperar e não podemos implementar estratégias sem estarmos alicerçados nessa cooperação. Isoladamente não vamos a lado nenhum.

"A tecnologia é um instrumento muito importante na monitorização da atividade turística do Grande Vale do Côa. Temos que saber quantos são e qual o seu perfil para dar respostas satisfatórias e melhorar a experiência de quem nos visita."

Sente que está a convencê-los?
Acho que sim. Não é fácil remar contra a maré e às vezes dá vontade de desistir, mas nós temos muita gente boa a trabalhar aqui na região.

COM VONTADE PARA FAZER MAIS

Catarina Dulcineia Moura a olhar para  Vale do CôaEsta é uma zona raiana. Qual a relação com os vizinhos espanhóis?
Temos, e eu, inclusivamente, faço parte de uma associação internacional de empresários - Raia Centro Ibérica. Os problemas de lá (Espanha) são os mesmos e a mensagem que chega até me leva a dizer que são mais graves, porque eles têm mais dificuldade que nós a chegar aos membros do Governo Central. O Alcaide de Fuentes de Oñoro até diz que o governo central só conhece Espanha até Salamanca. É uma declaração que espelha a condição de abandono e esquecimento do poder central espanhol. Há uma cumplicidade entre os dois territórios.

Há alguma estratégia comum?
Sim, pretende-se implementar a Eurocidade, que consiste num agrupamento europeu de cooperação territorial. O Município de Almeida, a Junta de Freguesia de Vilar Formoso, o Ayuntamiento de Fuentes de Oñoro e o Ayuntamiento de Ciudad Rodrigo, são alguns dos participantes. A ideia é fazer aqui a “Porta da Europa” evidenciando a mais antiga fronteira da Europa, e o objetivo é unir esforços para chamar à atenção para um território esquecido e que agora, com a ligação da A62 à nossa A25, vai ficar ainda mais à margem de quem por aqui passa.

Além de Coordenadora da ADR Territórios do Côa, professora universitária e investigadora, é deputada municipal na Guarda e Deputada Intermunicipal na CIM Beiras e Serra da Estrela. Tem aspirações políticas?
Tenho a aspiração de fazer mais e melhor pelo meu território. Sinto que é o meu dever e sinto-me preparada, porque estou sempre a preparar-me e a assimilar mais conhecimento. Eu quero contribuir, por isso, se for através da política ativa, sim, podem contar comigo. Entretanto, vou continuar a minha missão até me cansar (risos).

Se um dia fosse eleita deputada da Assembleia da República, quais seriam as medidas pelas quais se bateria com urgência?
Trabalhar medidas de atratividade para a região ao nível da fiscalidade, da habitação, da educação, melhorar as condições que eu entendo serem fundamentais para um casal decidir fixar-se aqui. Se criarmos estas condições e não estivermos constantemente à espera daqueles discursos complacentes, que aliás ficam sempre muito bem, sobretudo numa época eleitoral como esta, eu não consigo alinhar. É preciso criar melhores condições para o comércio local, facilitar o investimento e não o crédito, como se tem feito, e estimular a renovação das estruturas de gestão das empresas.

@iNature. Grande Vale do Côa. Associação de Desenvolvimento Regional dos Territórios do Côa.