Pode parecer mais um alojamento rural numa pitoresca Aldeia do Xisto, mas é muito mais do que isso. A Cerdeira – Home for Creativity é uma escola de artes e ofícios, onde se convida quem chega ao reencontro pessoal através da criatividade.
Nos últimos anos, o investimento e a promoção turística fizeram das Aldeias do Xisto uma marca territorial e um pólo de atração turístico. Na Serra da Lousã, uma das serras brindadas pela existência destes pitorescos povoados como Gondramaz, Candal, Talasnal, entre outras, as aldeias ganharam uma nova vida. As residências dos habitantes de outrora deram lugar a alojamentos locais e rurais, lojas de artesanato e restaurantes, e nasceram empresas de serviços de animação turística para responder à procura de quem ali vai pernoitar ou simplesmente passear.
A aldeia de Cerdeira é mais um desses exemplos. Recôndita e de acesso apertado tem muito em comum com as aldeias vizinhas. Está implantada num morro rochoso com a força da engenharia humana em respeito pela natureza e rodeada por uma frondosa floresta que proporciona um cenário de extrema beleza, mas o envelhecimento da população e o tempo deixaram-na ao abandono e à ruína. Há três décadas, no povoado composto por pouco mais de meia dúzia de casas, vivia apenas o sr. Constantino. Hoje, devido a um projeto turístico e à marca Aldeias do Xisto, Cerdeira é uma aldeia cheia de vivacidade. E não é apenas mais uma Aldeia do Xisto, nem o Cerdeira – Home for Creativity (Cerdeira) apenas mais um alojamento rural.
“A Cerdeira não é bem um alojamento rural, mas uma Escola de Artes e Ofícios. A ideia inicial deste projeto foi a criação de uma escola artística e os alojamentos eram para quem vinha à escola”, explica Sérgio Alves (Sérgio). “Só que houve tanto investimento na marca Aldeias do Xisto que a procura pelo alojamento ‘explodiu’”, justifica.
Sérgio sabe diferenciar ofertas turísticas. Mudou-se recentemente do hotel Octant – Lousã para o Cerdeira, onde é anfitrião e responsável de vendas. Apesar do conforto das dez casas que compõem o aldeamento, quem procura luxo e exuberância não é ali que os vai encontrar. Há internet, mas não há piscinas, saunas ou jacuzzis, nem sequer televisão. Ali oferece-se equilíbrio espiritual através da arte e da expressão criativa e é isso que a maioria dos “hóspedes” procura. Inclusive empresas que veem neste tipo de atividade uma forma de fortalecer o espírito e o bem-estar das equipas. “Quem nos procura fá-lo sobretudo devido aos cursos e workshops da Escola de Artes e Ofícios”, diz Sérgio. Catarina Serra (Catarina) explica porquê.
“Os nossos cursos e workshops espelham as novas tendências da cerâmica e a associação à sustentabilidade”, explica a diretora-geral do Cerdeira. Um pouco por todo o mundo, a cerâmica tem-se vindo a associar à sustentabilidade traduzida na reutilização e no uso de materiais locais. “Não só a argila, hoje qualquer planta local pode ser cozida, transformada em pó e dar origem a um tipo de vidrado único”, explica Catarina. A estas técnicas inovadoras e criativas junta-se a mestria do ensino e um forno muito particular.
Suso Machon, Eddie Curtis e Mathew Bakely são apenas alguns dos ceramistas de renome internacional que ministram os cursos e workshops. “Nós não trabalhamos com formadores, mas com artistas. Mais do que formação há uma partilha de conhecimento”, sublinha Catarina. O Centro de Artes e Ofícios da Cerdeira é talvez o único local da Europa onde é possível aprender com estes mestres. Ainda assim, não são cursos ou workshops exclusivamente para profissionais. “Um gestor, um arquiteto, um designer, as mulheres, por exemplo. Há, cada vez mais, a necessidade de ter alguma atividade criativa”, diz Catarina. “Eu penso na Cerdeira como um retiro criativo, para sentir e criar. E isso é para toda a gente”, defende.
A outra particularidade do Centro de Artes e Ofícios da Cerdeira é o forno a lenha onde são cozidas as peças. Desenhado e construído pelo sensei Masakazu Kusakabe, é em si uma obra de arte e engenharia. “Neste forno, as peças nunca saem iguais, mesmo que tenham entrado iguais. Abrir o forno é sempre um momento de grande excitação. É a magia de cozer a lenha”, explica Catarina. Além de possuir várias câmaras de cozedura, este forno único na Península Ibérica e um dos poucos existentes na Europa não liberta fumo, o que permite o seu funcionamento durante todo o ano, mesmo quando há risco de incêndio.
Uma vez terminadas, os criadores levam as peças consigo ou deixam-nas expostas na galeria do aldeamento onde podem ser adquiridas pelos visitantes. Irene é a anfitriã deste espaço. “Vendemos bastante, felizmente”, diz. “Os estrangeiros dão muito valor às peças e até acham os preços muito em conta dada a sua qualidade técnica e artística”, adianta. Além da cerâmica, há workshops de desenho, vime e madeira, entre outros (ver cursos e calendário AQUI).
A idealização do que agora se vê em Cerdeira surge no final da década de 1980 pela imaginação de Kerstin Thomas, uma estudante alemã, na altura artesã em madeira, que se apaixonou pela aldeia e ali se radicou com o então companheiro, Bernard Langer. A ela foram-se juntando outras pessoas com a mesma vontade, entre eles, José e Natália Serra, os pais da nossa anfitriã. Catarina tinha quatro anos quando foi a Cerdeira pela primeira vez e foi crescendo por ali. “Esta aldeia é um conjunto de sonhos, alguns concretizados, outros adiados ou parados no tempo”, diz, à medida que vamos andando por uma das duas inclinadas ruas da aldeia e observando as poucas ruínas ainda existentes. “São sonhos à espera de serem realizados”, diz.
Mas o estado agora arranjadinho da aldeia que os turistas fotografam para as redes socias tem uma história de dificuldade e resiliência por trás. “Quem aqui vivia tinha uma vida complicada”, conta Catarina, referindo-se às pessoas que viviam na aldeia. As pessoas viviam da agricultura e todos os campos à volta da aldeia eram trabalhados. Muitos não resistiram e emigraram. E quem veio depois encontrou muitos desafios. “Assisti a muitas desistências, sobretudo, quando surgiam filhos. Não havia a base, a rede de apoio necessária para permanecer”, explica. As primeiras casas recuperadas surgem pela necessidade destas pessoas ganharem algum dinheiro. “Eu diria que entre a década de 1990 e 2012, quando o atual projeto começou, o sonho andou meio perdido”, confessa.
Por ter conhecido as várias e mais difíceis fases do projeto e por ser apaixonada pelo que faz, é com grande orgulho que vê o sucesso do projeto Cerdeira. Provavelmente, o mesmo que sentiria o sr. Constantino se hoje visse a sua aldeia. Três décadas depois de ver partir o seu último habitante original, a aldeia de Cerdeira tem uma “população” que flutua entre 50 e 70 pessoas, fora as dezenas ou centenas de turistas que por ali passam diariamente para conhecer mais uma Aldeia do Xisto. “Este projeto ensina-nos uma grande lição. Não vale a pena recuperar casas apenas para as pessoas dormirem, é preciso criar um propósito. Sem este propósito da arte e da criatividade, o que é que levaria as pessoas a virem aqui? Cerdeira seria igual a muitas outras Aldeias do Xisto”, defende Catarina.
É com a filosofia do propósito, mas com um novo tema e até um conceito mais arrojado que na encosta por trás da aldeia de Cerdeira, nas aldeias de Silveira de Cima e Silveira de Baixo, surge o “projeto Silveira”, como lhe chama Catarina “É o culminar de vários projetos das pessoas da família e de outras que estão envolvidas connosco”, explica a gestora. A ideia inicial deste projeto, pensado ainda antes da pandemia, era aplicar a mesma filosofia mas numa vertente tecnológica, daí o nome do primeiro pólo: Silveira Tech (Silveira de Baixo).
José e Natália Serra têm profissões ligadas à área tecnológica através da Olisipo Way, uma empresa de capital de risco, lidam muito com start-ups, pelo que a ideia de trazer pessoas desta área para trabalhar no meio da Serra não lhes era de todo estranha. Entretanto, outros valores se levantaram. O princípio da sustentabilidade herdado do projeto Cerdeira não só se impôs como evoluiu para regeneração. “Já não podemos pensar em deixar as coisas como as encontrámos, mas melhor do que as encontrámos”, defende Catarina. Assim nasce o segundo pólo do projeto Silveira, o Regen Center (Silveira de Cima).
Ainda que complementares e geradores de sinergias, Silveira e Cerdeira têm algumas diferenças. Silveira pretende ser uma oferta de transformação pessoal, o que obriga a estadas longas. Catarina aponta para períodos entre duas semanas a nove meses. “A recuperação das casas será feita com os materiais da região, mas não necessariamente ao estilo arquitetónico tradicional”, diz. “Temos de dar mais conforto do que o oferecido pelas tradicionais casas de xisto, usadas para estadias curtas”, justifica. O projeto Silveira implica a requalificação de uma aldeia bastante maior que Cerdeira. Além das residências, haverá espaços sociais, de lazer e de trabalho, uma escola de floresta, ginásio, mercearia, armazéns agrícolas, entre outros. E, simultaneamente, serão recuperados 220 hectares de floresta com recurso a técnicas de gestão como a permacultura.
“Este projeto pretende mostrar que é possível viver bem, prosperar e preservar a natureza ao mesmo tempo. Queremos que as pessoas saiam daqui diferentes, a saber que se pode viver de uma forma equilibrada e sem destruir”, explica. Silveira é um projeto para desenvolver em 40 anos. Catarina estima que só a fase de construção demore cerca de uma década. Um projeto ambicioso, certamente, mas não impossível. A transformação da aldeia do sr. Constantino na atual Cerdeira, é prova disso mesmo.
@iNature. Fotos iNature. Set 2023.