Ricardo Brandão, coordenador do CERVAS, a gesticular

Ricardo Brandão, Coordenador do CERVAS - Centro de Ecologia, Recuperação e Vigilância de Animais Selvagens.

CERVAS. HÁ 20 ANOS A CUIDAR DA NATUREZA

É natural da cidade do Porto, mas as ligações da família ao campo e à ruralidade influenciaram-no desde cedo. Da invicta rumou à Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, onde estudou Medicina Veterinária e fundou a Associação ALDEIA, entidade que gere dois centros de recuperação e investigação de animais selvagens, o RIAS, em Olhão, e o CERVAS, em Gouveia. Em entrevista à iNature, Ricardo Brandão explica o trabalho desenvolvido no CERVAS, aborda os interesses por vezes divergentes entre o desenvolvimento do território, o turismo e a conservação da natureza. Diz que o recém aprovado Programa de Revitalização do Parque Natural da Serra da Estrela não responde à perda de habitats e biodiversidade perdida nos incêndios de 2022 e mostra-se crítico sobre a abordagem turística vigente na Serra da Estrela. "Há mais pessoas a procurar a natureza e a querer conhecê-la, mas, por vezes, o que lhes é proporcionado condiciona a abordagem", defende. Aponta bons e maus exemplos do que se faz pelo turismo de natureza no Centro de Portugal e que a região tem potencial para o birdwatching. Uma conversa para ler e refletir.

O que é e o que faz o CERVAS?
O Centro de Ecologia, Recuperação e Vigilância de Animais Selvagens (CERVAS) foi fundado em 2004 pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e está sob gestão da Associação ALDEIA desde 2009. A base da nossa atividade é receber animais feridos ou debilitados que são entregues pelas pessoas às autoridades e que, por sua vez, os entregam a nós. A nossa função principal é a de hospital. Recebemos os animais, recuperamo-los, quando é possível, e depois devolvemo-los à natureza. Em paralelo, está a parte da ecologia onde fomentamos a educação ambiental e para a ciência.

Quantos e que tipos de animais chegam ao CERVAS?
Recebemos entre 500 a 700 animais por ano, o que até é um número reduzido para a realidade ibérica. Normalmente, os centros que estão no interior recebem menos animais que os centros que estão no litoral. No centro que gerimos no Algarve, o RIAS, chegamos aos 3.500 por ano.

Quais são as principais causas dos “internamentos”?
De forma direta ou indireta, são todas de origem humana. A principal e a mais transversal é o atropelamento. Depois surgem as colisões. Nas zonas mais urbanas com vidros e janelas, nas zonas mais afastadas dos meios urbanos, com geradores eólicos e linhas elétricas. Há também muitas aves que nos chegam feridas por electrocussão. É muito comum em aves de porte médio e grande como as cegonhas, por exemplo, e é um dos ferimentos mais difíceis de recuperar. Nas épocas de reprodução também é frequente chegarem-nos aves que caem ou saem do ninho antes do tempo e são recolhidas pelas pessoas, algo que nem sempre deve ser feito.

Porquê?
Se um melro ou um pardal sem lesões aparentes andar a saltitar num jardim não deve ser recolhido. Ao fazê-lo, as pessoas estão a raptá-los aos pais. Por exemplo, agora estamos em época de receber corujas-do-mato porque é muito normal saírem cedo do ninho. O conselho que dou é, se não for em ambiente urbano, deixem-nas estar porque os pais alimentam-nas no chão. Outro exemplo é o do ouriço-cacheiro. Estes animais gostam dos ambientes urbanos, jardins e hortas, e como têm piada as pessoas tendem a recolhê-los e a alimentá-los porque pensam que têm algum problema, o que não acontece na maioria dos casos e até pode ser perigoso. Estes animais são portadores de doenças fúngicas – zoonoses -, que passam facilmente para os nossos dedos, mãos e braços. Numa criança ou num idoso pode ser perigoso. Ou seja, nunca se deve levar um animal selvagem para casa, mas sim entregá-lo às autoridades.

ricardo brandão com uma coruja do mato ferida

No dia em que vistámos o CERVAS, deu entrada no centro uma coruja-do-mato resgatada de uma chaminé pelo SEPNA.

E como é que o devem fazer?
A forma mais simples é contactar o SEPNA - Serviço de Proteção da Natureza e Ambiente, da Guarda Nacional Republicana (GNR), porque tem uma ampla rede de recolha distribuída pelo território, complementada com a PSP e áreas protegidas. Estas entidades entregam os animais à rede de centros de recuperação coordenada pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), que inclui cerca de doze centros espalhados pelo território. Por isso, não há razão nenhuma para as pessoas levarem animais selvagens para casa. Até porque é proibido e pode ser perigoso, como já referi.

E sobre o papel da educação ambiental e para a ciência, que tipo de iniciativas organizam? Têm algum calendário de atividades?
Vamos às escolas e recebemo-las no centro, e temos parcerias com outras organizações com as quais desenvolvemos atividades. A atividade que nos é mais solicitada é a devolução de um animal à natureza. Sentimos que é uma ferramenta importante para a nossa abordagem à educação ambiental. No entanto, como nem sempre é possível ter animais para libertar, ou os locais podem não ser adequados, fomos criando outras atividades ao longo do tempo onde abordamos a biologia, a anatomia, os modos de vida dos animais para que as pessoas os compreendam melhor e depois temos alguns projetos específicos.

Quais são?
A “Escola da Floresta”, que se baseia num conceito desenvolvido nos países nórdicos desde a década de 1950, é um deles. Passa por dar tempo de floresta às crianças para que elas possam encontrar animais, plantas ou  fungos e divertir-se ao mesmo tempo sem grande orientação. Costumamos usar a Mata da Cerca, aqui em Gouveia, que é um bosque muto interessante de carvalhos e castanheiros para esta atividade. Organizamos também oficinas de educação ambiental que envolvem a utilização de materiais biológicos como penas, crânios, entre outros, e temos o clube “PENAS – Protege  os Ecossistemas Naturais dos Animais Selvagens”, de onde surgem conteúdos com ideias que convidam à brincadeira, seja em contexto escolar, familiar ou até individual. Como construir um hotel para insetos, casas para abelhões, uma pequena charca, etc, jogos que fazem alguma diferença na Biodiversidade local e que as crianças gostam.

Têm um calendário de atividades ou são as escolas que entram em contacto convosco e vocês definem o programa?
Nós tentamos ser o mais flexíveis possível, porque cada caso é um caso e as solicitações são muitas. Dividimos os jovens entre este espaço (Casa da Torre) e o CERVAS, para além das visitas às escolas, por vezes até em actividades coordenadas pelo SEPNA que convida o CERVAS para dinamizar as acções.

“A libertação de um animal é o momento final da recuperação do animal e um momento de celebração, não pode ser encarado como uma brincadeira ou exibição.”

O SEPNA é um parceiro que ajuda a responder às solicitações. É isso?
Nós temos uma relação de parceria e confiança com o SEPNA. No caso das equipas de Viseu, e por vezes Guarda, cedemos-lhes os animais que eles nos entregaram antes e são eles que fazem a ação com a escola, por exemplo. Fazem a oficina, a libertação. Só fazemos isto com equipas que demonstram interesse e capacidade, porque é um trabalho de enorme responsabilidade. Uma ação como uma libertação não pode correr mal e não é uma exibição.

Não é um espetáculo...
Exato. A libertação de um animal é o momento final da recuperação do animal e um momento de celebração, não pode ser encarado como uma brincadeira ou exibição. Cada vez mais as pessoas vêm espetáculos com animais e contrariar essa mensagem também é uma luta para nós.

ricardo brandão numa salaa de exposição na casa da torre, no cervas, em gouveia

Ricardo Brandão numa das salas de exposição da Casa da Torre, em Gouveia, a sede do CERVAS.

O CERVAS faz também um trabalho de vigilância. Como é que tem evoluído a relação das pessoas com os animais selvagens e qual é o balanço que fazem da evolução da conservação e da proteção da biodiversidade?
Cada animal que entra no CERVAS diz-nos algo através da causa de ingresso que, só por si, é um elemento que nos permite conhecer as problemáticas. Há algumas que sentimos que estão a melhorar como é o caso do cativeiro ilegal. Há menos ingressos derivados de cativeiro ilegal e menos apreensões pela GNR. É uma realidade que está a melhorar muito por força das autoridades e da sua eficácia.

Neste momento, o que traz mais problemas são as estruturas. A rede de estradas é cada vez mais densa, o que leva a um agravamento das populações de algumas espécies e as estruturas elétricas e os parques eólicos são muito más para as aves e os morcegos. Os morcegos nem precisam de colidir, morrem por barotrauma devido à mudança súbita da pressão atmosférica. E agora temos os parques fotovoltaicos. Na Beira Baixa, por exemplo, temos parques fotovoltaicos ao lado de zonas de nidificação da águia imperial. É uma convivência cada vez mais difícil.

O EQUILÍBRIO DELICADO ENTRE DESENVOLVIMENTO, TURISMO E CONSERVAÇÃO

Em jeito de balanço, estamos ou não melhor em termos de conservação da natureza?
Não estamos melhor, porque as áreas protegidas estão a ser cada vez mais agredidas e os seus modelos de gestão contemplam cada vez menos a conservação e mais o turismo. Portanto, a partir dos animais que chegam ao CERVAS e a perceção que temos através das atividades de campo, leva-nos a concluir que as coisas não estão nem mais fáceis nem melhores em termos de conservação.

"A agricultura intensiva pode ser o modelo pelo qual optamos enquanto espécie humana, mas temos de assumir que não é compatível com a proteção e conservação da natureza".

Sente-se algum pessimismo nessa apreciação.
Não é uma questão de ser pessimista ou otimista, é a observação do que está a acontecer. Há uma evidência clara de declínio de insetos, por exemplo, a nível global, que está relacionada com as alterações climáticas, mas também com as práticas agrícolas. Os nossos modelos de desenvolvimento agrícola não são compatíveis com a conservação. Veja-se os exemplos do Alentejo e da Beira Baixa, onde agricultura intensiva tem originado um declínio comprovado do número de aves agrícolas. A agricultura intensiva pode ser o modelo pelo qual optamos enquanto espécie humana, mas temos de assumir que não é compatível com a proteção e conservação da natureza.

Torre, o ponto mais lato da Serra da Estrela

A Torre é um dos habitats da Serra da Estrela que sofre mais com a pressão turística. Foto:@kitato

O turismo também é um fator de pressão?
Sim, e a Serra da Estrela é um bom exemplo. O CERVAS faz um curso sobre aves invernantes há 12 anos, em parceria com o Centro de Interpretação da Serra da Estrela (CISE) e ao longo deste período sentimos que sítios que eram bastante bons na Serra da Estrela para a observação de aves ficam cada vez piores, porque o habitat está cada vez mais alterado. As alterações climáticas têm influência, mas existem cada vez mais estruturas, obras e uma pressão humana que leva os animais a abandonar os seus habitats de eleição.

"Se formos à Serra de Gredos, em Espanha, ninguém vai de carro ao topo mais alto da serra, vai a pé, a caminhar, a fazer turismo de natureza. Nós aqui temos outra opção."

É um equilíbrio difícil de conseguir...
Temos que tomar opções. Ter a montanha cheia de turistas a ir de carro até ao ponto mais alto para tirar umas fotografias e visitar um centro comercial é uma opção, mas há outras. Se formos à Serra de Gredos, em Espanha, ninguém vai de carro ao topo mais alto da serra, vai a pé, a caminhar, a fazer turismo de natureza. Nós aqui temos outra opção.

O turismo que se pratica na Serra da Estrela não é turismo de natureza?
A maior parte, não. Ter milhares de automóveis na Torre num fim-de-semana, algo que quando acontece é visto como um sucesso, não é turismo de natureza, pelo contrário, é algo que tem um tremendo impacto negativo na natureza da Serra da Estrela. Até pode ser turismo num espaço natural, mas não é turismo de natureza. As pessoas vão lá, algumas contemplam a paisagem, tiram umas fotografias, mas não ficam a conhecer nada da natureza do local, que é o propósito do turismo de natureza.

Presumo então que não vejam com bons olhos o plano apresentado pela Turistrela no ano passado para a reabilitação da zona da Torre.
A concretizar-se, seria mais um entre muitos planos, que só iria tornar ainda mais difícil a compatibilização do turismo com a conservação de uma Área Protegida que, neste caso, é a Serra da Estrela.

PROGRAMA DE REVITALIZAÇÃO DO PN DA SERRA DA ESTRELA POUCO FOCADO NA CONSERVAÇÃO DA NATUREZA

Foi aprovado em fevereiro o Programa de Revitalização do Parque Natural da Serra da Estrela (PRPNSE). Qual é a apreciação que faz sobre o que já é conhecido?
O que foi apresentado até ao momento é um conjunto de ideias e planos que envolvem poucas intervenções de recuperação do habitat, e muito investimento financeiro em barragens, estradas e outro tipo de estruturas. Tem uma abordagem turística no seguimento da estratégia errada que tem vindo a ser seguida. Não é um programa de recuperação dos habitats e da biodiversidade que foi perdida nos incêndios de 2022.

A Associação Aldeia é um dos 28 signatários da carta aberta publicada a pedir transparência e participação. Porquê?
A Associação ALDEIA é um dos signatários porque, como muitas outras entidades, estamos desconfortáveis com o que foi anunciado e queremos ter acesso ao documento completo para saber o que se pretende fazer. Foi este o foco do primeiro “comunicado”. Preocupa-nos o que o Governo divulgou, porque são maioritariamente estruturas anunciadas como importantes para o desenvolvimento da região. Nós aí não podemos questionar, porque apesar do investimento anunciado ser claramente inferior ao pedido pelos municípios, estão lá contempladas algumas das ambições das pessoas e dos autarcas e cada um tem direito à sua opinião. Agora, este tipo de ambições não deve fazer parte de um plano de revitalização de um Parque Natural.

"...a Serra da Estrela já tem uma abordagem turística bastante massificada em alguns pontos, o que não é compatível com a classificação de Parque Natural."

Não contempla a recuperação dos habitats perdidos no incêndio?
O programa tem algumas ações que entendemos interessantes, mas as de maior dimensão, que sabemos serem as que irão absorver a maior parte do investimento anunciado, são barragens e estradas que, claramente, não são positivas para a biodiversidade. A Serra da Estrela até pode precisar delas por diversas razões, incluindo para a abordagem turística vigente na região, que quer mais gente na serra e por isso exige mais e melhores acessos, mas a Serra da Estrela já tem uma abordagem turística bastante massificada em alguns pontos, o que não é compatível com a classificação de Parque Natural. Pode-se até chamar-lhe outra coisa e optar pela desclassificação, um cenário que recentemente se colocou em Espanha no Parque Natural de Doñana, desclassificado pela UICN, devido à má gestão dos autarcas em relação à água e ao turismo. Isto é uma realidade, mas será a que queremos aqui?

Há falta de sensibilidade dos municípios em relação à preservação do património natural?
Há municípios a incorporar a natureza nos seus planos de desenvolvimento. Seia, por exemplo, investiu no Centro de Interpretação da Serra da Estrela, que é um marco na visitação e no turismo de natureza da Serra da Estrela. Tem técnicos muito bons, exposições muito completas, e quem quiser conhecer verdadeiramente a área protegida tem ali um excelente espaço. Já a Covilhã, por exemplo, tem vindo a optar por medidas de elevado impacto no território. Refiro-me, por exemplo, aos miradouros que abrem brechas e degradam a paisagem, e às propostas de barragens com o intuito de alimentar núcleos turísticos como as Penhas da Saúde que vão aumentar a pressão sobre aqueles locais. São duas visões diferentes e duas portas da Serra da Estrela que podem funcionar como tal, mas que têm impactos diferentes do ponto de vista da conservação da natureza, da divulgação da biodiversidade e do turismo de natureza na área protegida.

"O ICNF é essencial se queremos ter uma rede de áreas protegidas. Tem de existir uma estrutura que faça a gestão e imponha regras. Mas temos de conseguir que as regras sejam aceites e essa é a dificuldade."

ricardo brandão a gesticular

Para o coordenador do CERVAS, as Áreas Classificadas deviam ter um diretor para agilizar e melhorar as relações com os agentes locais.

Também existe alguma fricção entre o ICNF e os municípios e por vezes com a população.
O ICNF é essencial se queremos ter uma rede de áreas protegidas. Tem de existir uma estrutura que faça a gestão e imponha regras. Mas temos de conseguir que as regras sejam aceites e essa é a dificuldade. Não podemos esperar que numa área protegida seja fácil fazer o mesmo que pode fazer fora dela ao nível de construção de estruturas e de intervenção no território e é para isso que existem os planos de ordenamento.
Neste momento, a luta dos autarcas e da Comunidade Intermunicipal das Beiras e Serra da Estrela (CIMBSE) é alterar o plano de ordenamento da Serra da Estrela porque o que existe, dito pelo seu atual presidente, não serve. Quando temos este tipo de abordagem temos um problema de compatibilização. Acho que temos que assumir que é o ICNF que define as regras e temos que aceitá-las e segui-las. Mas, pelo que temos visto, acho que é difícil que isto aconteça.

E como é que esse conflito se resolve?
O ICNF tem de ter mais presença no território. Quando cheguei aqui, em 2005, o PNSE tinha um diretor que deixou de existir por uma questão de orgânica ou de recursos. Agora, o ICNF está organizado por regiões, mas acho que não é a estrutura adequada.

Até admito que algumas áreas protegidas, pela reduzida dimensão, não necessitem de um diretor, mas uma área como a Serra da Estrela necessita. Penso que esta seria uma solução não difícil de implementar que teria consequências muito positivas na melhoria das relações entre o ICNF e todos os agentes locais.

Os modelos de cogestão, porque colocam à mesa da decisão todos os agentes, podem contribuir para a solução?
Os modelos de cogestão já estão em curso e vamos ter a oportunidade de avaliar, mas a meu ver não estão a funcionar porque estão desenhados para dar mais poder aos municípios e a proteção e conservação da natureza não é o objetivo dos municípios.

"As áreas protegidas devem seguir o critério da capacidade de carga dos sítios e a Serra da Estrela nem sequer está a pensar nisso. O objetivo continua a ser atrair mais e mais turistas, o que não é bom para a proteção e conservação da natureza."

São interesses diferentes?
Sim. Pode funcionar para gerir um parque cultural ou um parque de diversões, mas não para gerir um parque natural. Os municípios podem, e bem, estar preocupados com os incêndios, com o turismo, mas não estão sequer capacitados para gerir a biodiversidade e a conservação da natureza. Não têm equipas técnicas para isso. Em Gouveia, por exemplo, não há um único técnico com funções de biólogo a trabalhar no município. Logo, não podemos esperar que este município incorpore verdadeiramente a conservação da Biodiversidade nas suas opções estratégicas. E esta é a realidade da esmagadora maioria dos municípios da região.

E as pessoas? Há mais sensibilidade em relação à natureza? Há mais turistas de natureza em Portugal do que há alguns anos?
Julgo que sim. Há mais pessoas a procurar a natureza e a querer conhecê-la, mas, às vezes, o que lhes proporcionamos condiciona a abordagem. Os passadiços e, em particular, os Passadiços do Mondego são um bom exemplo. Funciona e é um sucesso. Mas a artificialização de um espaço causada por uma estrutura, um passadiço ou um miradouro, afasta as pessoas que querem conhecer um espaço bem conservado e afasta também a natureza, porque são espaços que terão de ser mantidos com corte de vegetação, fogo controlado, etc. Os passadiços acabam por ser outro tipo de massificação, talvez com menor impacto do que o acesso massificado com viaturas, mas, ainda assim, aquém da oferta de outros países onde, efetivamente, se proporcionam experiências de natureza. As áreas protegidas devem seguir o critério da capacidade de carga dos sítios e a Serra da Estrela nem sequer está a pensar nisso. O objetivo continua a ser atrair mais e mais turistas, o que não é bom para a proteção e conservação da natureza.

britango a voar

Britango na Reserva da Faia Brava, Vale do Côa. Foto: Faia Brava.

BIRDWATCHING TEM POTENCIAL PARA CRESCER

No Algarve e em algumas zonas do litoral atlântico, o birdwatching já está bastante desenvolvido. O Centro de Portugal tem potencial para ser um polo de atração de turismo de observação de aves?
Sim e acho que já está a acontecer alguma coisa. Aveiro, Estarreja, com o projeto BIORIA, têm projetos muito interessantes alicerçados em redes de percursos de birdwatching, pedestres, de bicicleta e até de barco e eventos que promovem esse tipo de turismo, o Observa Ria é um excelente exemplo. Águeda também está a trabalhar muito bem na Pateira de Fermentelos, que é um dos maiores lagos da ibéria. Tem uma boa rede de observatórios.
No interior destaco o Sabugal. É um território muito bem conservado do ponto de vista florestal com belas manchas de carvalhal. Há ali bom turismo de natureza a acontecer e vontade de o potenciar. O festival Naturcôa é disso um exemplo.

E nas regiões do Vale do Côa e do Tejo Internacional, zonas de abutres e aves de rapina?
São bons sítios e já com algumas iniciativas concretizadas, mas com muito trabalho ainda por fazer. Talvez ainda falte mais divulgação, que dê destaque ao bom estado de conservação da Biodiversidade dos locais, com alguma sinalética para interpretação e identificação de verdadeiros percursos de interpretação da Natureza.

Não esquecendo o que já foi feito. O importante é cada município identificar dentro do seu território os melhores locais que tem e isso passa por estabelecer parcerias com entidades que podem ajudar a fazer isso, porque as equipas técnicas da generalidade dos municípios ainda não têm a visão e a experiência necessárias. Por exemplo, o Geopark Estrela ou o Geopark Arouca têm pedido apoio técnico ao CERVAS para os passeios que eles organizam, na área da Biodiversidade. Ou seja, eles dominam as suas áreas, têm maior foco na geologia, mas recorrem a entidades como a nossa, para a observação de aves. Por exemplo, com o Geopark Estrela estamos a trabalhar na identificação dos melhores locais para observar aves dentro dos nove municípios que integram o parque para depois criar uma oferta anual e saídas de campo em que envolvemos os técnicos dos municípios. Às vezes basta apenas colocar uma sinalética própria, mas com a tecnologia atual nem é preciso muito investimento.

@iNature | CERVAS - Centro de Ecologia, Recuperação e Vigilância de Animais Selvagens | março 2024