professora cristina estevão num corredor da universidade da beira interior

Professora Cristina Estevão, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade da Beira Interior.

“AS EMPRESAS QUE NÃO SE ADAPTAREM ÀS NOVAS TECNOLOGIAS VÃO FICAR PELO CAMINHO"

O sotaque denuncia-a. É natural de Parchal, Algarve, mas os mais de trinta anos de vida passados na região das Beiras e Serra da Estrela já lhe conferem umas costelas beirãs. Cristina Estevão chegou aos 19 anos à Guarda para estudar Gestão no Instituto Politécnico local. Ainda a estudar ingressou na Pousada Convento de Belmonte onde esteve dez anos até rumar à Universidade da Beira interior (UBI) para fazer o mestrado. Pouco depois, estava a coordenar o curso de Gestão Hoteleira na Escola Superior de Gestão de Idanha-a nova. Atualmente é docente e investigadora no Departamento de Economia e Gestão na UBI onde, entre outras funções, é diretora do curso de “Turismo e Inovação Digital”. E foi na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da UBI que recebeu a iNature para uma conversa sobre inovação no setor do turismo. Defende que é preciso capacitar os profissionais do turismo com competências digitais para que as empresas não percam o comboio da digitalização do setor, e aponta a gastronomia como uma aposta estratégica da região das Beiras e Serra da Estrela.

Acompanha o turismo na região das Beiras e Serra da Estrela há pelo menos duas décadas. Como é que caracteriza a evolução do setor na região ao longo desse período?
Foi um período de crescimento notável que resultou do reconhecimento do interior do país como um destino turístico atrativo, que oferece um conjunto de experiências autênticas, e que tem na sua ruralidade, patrimónios cultural e natural, valores que ganharam reconhecimento por parte dos turistas. Mas também se deveu à diversificação da oferta turística, que passou pelo desenvolvimento de atividades relacionadas com o turismo rural, de natureza e aventura, e pelo turismo cultural e histórico.

Houve uma melhoria das infraestruturas e dos próprios serviços, uma estruturação da oferta. É isso?
Sim, houve uma melhoria muito significativa da oferta que foi ao encontro das exigências dos turistas. Como diz o ditado, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, e eu acho que se desenvolveram vontades e gostos que foram ao encontro do autêntico, um dos pontos fortes da região das Beiras e Serra da Estrela. A oferta soube, e muito bem, adaptar-se a esta mudança.

"O período da pandemia permitiu a afirmação do interior como destino turístico".

Houve muito investimento público. Foi importante?
Foi fundamental. Sem o investimento público, seja nacional ou através de fundos comunitários, o turismo rural, por exemplo, não seria o que é hoje. Aliás, este segmento está muito relacionado com os apoios ao investimento. Sem ele muitos empresários não teriam capacidade para fazer os seus investimentos.

O último ano foi de recordes para o turismo nacional e a região centro cresceu mais que o mercado nacional, mas na Bolsa de Turismo de Lisboa atingiram-se novos recordes de reservas de viagens para o exterior. Há o risco de se voltar ao período pré-pandemia, quando as pessoas preferiam o estrangeiro ao interior?
São tendências e o setor tem de se adaptar a elas. Há evidências que a pandemia proporcionou novas oportunidades ao turismo no interior, nomeadamente, ao nível da valorização das atividades ao ar livre e ao contacto com a natureza. Naquele período, o interior foi o refúgio de segurança e tranquilidade que os ambientes urbanos e costeiros não tinham e isso levou muita gente para o interior do país, gente que ficou a conhecer um Portugal que não conhecia. O período da pandemia permitiu a afirmação do interior como destino turístico. Este ano até pode vir menos gente, mas quem já cá veio não vai esquecer as experiências que teve, e vai voltar.

mulher a gesticular

Cristina Estevão aponta a presença online como fator de competitividade das empresas do setor do turismo.

AS NOVAS TECNOLOGIAS E O TURISMO

A internet e as redes sociais estão a transformar o turismo numa atividade intensiva de conhecimento e informação. De que forma é que esta galopante evolução da componente digital está a influenciar o setor?
O digital está a revolucionar todos os setores, não só o turismo. O turismo pode, todavia, ser um caso particular devido às suas características muito próprias. No turismo, as novas tecnologias estão a ter um impacto que vão desde a forma como os turistas organizam as suas viagens até à forma como as empresas do setor se promovem e interagem com os seus clientes.

Há uma digitalização da relação entre os turistas e os agentes do setor.
Há uma relação diferente dada a informação e as possibilidades que a internet oferece. Com a vasta informação que existe online, as pessoas podem hoje planear as suas viagens de uma forma altamente personalizada. Há inúmeras plataformas de reservas online, de rent-a-car, de experiências. É até possível visualizar os destinos de forma virtual antes de decidir, visitar museus, dar passeios virtuais, entre outras coisas. Estas tecnologias influenciam muito o processo de decisão, e permitem escolher os destinos de acordo com as preferências e o orçamento disponível. Tudo, através de um computador ou telemóvel.

Ter um website otimizado para os motores de busca e ter uma estratégia de comunicação online, são fatores de competitividade para uma empresa do setor?
Sim, sem dúvida. São fatores importantes e essenciais para a competitividade de qualquer empresa que atue no setor do turismo nos dias de hoje.

"Uma avaliação positiva de um cliente na internet é um marketing muito valioso e poderoso".

Já não basta estar em plataformas como o booking.com?
Não basta estar no booking.com. A plataformas de reservas online como o booking.com são importantes porque além de permitirem a compra, são repositórios de avaliações dos hóspedes anteriores que influenciam na tomada de decisão dos turistas. Uma avaliação positiva de um cliente na internet é um marketing valioso e poderoso. Mas não basta estar presente numa destas plataformas, é necessária uma maior presença online.

mulher com com pasiagem por trás

Rapidez e empatia, é a fórmula para lidar com comentários negativos na internet, segundo Cristina Estevão.

As redes sociais fazem parte dessa presença?
As redes sociais têm desempenhado um papel fundamental na promoção e no marketing do setor e as empresas têm-nas utilizado como instrumento de marketing. O marketing de conteúdo, os influenciadores digitais, que estão muito na moda, os anúncios segmentados, são instrumentos para alcançar e envolver potenciais clientes - engagement. Estas plataformas possibilitam ainda a comunicação das suas experiências, dos destinos, dos alojamentos e dos restaurantes, e a obtenção de feedback imediato que também contribui para a tomada de decisão e para a reputação da marca.

Também há riscos nas redes sociais. Como é que se lida com os comentários negativos?
É fundamental agir rapidamente e com empatia. Nas redes sociais é sempre tudo muito rápido pelo que é fundamental que a empresa seja rápida. É importante responder de forma profissional e propor soluções. Se o problema exigir mais atenção, deve-se convidar o cliente a entrar em contacto de forma privada.
As empresas devem reconhecer os erros que cometem. Toda a gente erra, incluindo os clientes. Cada caso é um caso, mas é importante ser transparente e ver estes feedbacks negativos como uma oportunidade de aprendizagem. Se a empresa souber lidar bem com uma situação menos boa, conseguirá transformá-la numa experiência positiva e numa oportunidade de melhorar. Não há que entrar em pânico. A chave para uma boa gestão reputacional está na empatia.

Há evidência empírica da influência das redes sociais na angariação de clientes?
As conclusões dos estudos que tenho orientado dizem que o marketing de influência (influencers) enquanto estratégia de comunicação consegue atrair o público para as páginas das empresas e promover o envolvimento (engagement) com a marca. Isso é evidente através das métricas de “gostos”, “comentários” e “partilhas”. Os alunos que oriento têm mostrado um grande interesse em estudar a relação das redes sociais e a sua utilização como estratégia de marketing digital para promover alojamentos e serviços, e os dados mostram que há uma relação positiva, pelo menos em termos de interação com as marcas. Há um grande interesse em torno do marketing digital e do impacto que este pode ter numa estratégia de comunicação.

"...é importante realçar que apesar das vantagens, o marketing digital deve ser entendido como um complemento e não um substituto do marketing tradicional".

Quais são as vantagens do marketing digital em relação ao marketing tradicional?
O marketing digital oferece uma série de vantagens em relação ao marketing tradicional. Permite alcançar um público quase global de forma instantânea e a análise das campanhas em tempo real. É mais barato e fácil de gerir, porque permite o controlo dos gastos. É uma ferramenta muito ágil e flexível. No marketing digital é possível ajustar a estratégia rapidamente de acordo com as tendências do mercado. E, como permite o acesso a dados dos clientes e potenciais clientes, é ótimo para o desenho de estratégias futuras. Todavia, é importante realçar que apesar das vantagens, o marketing digital deve ser entendido como um complemento e não um substituto do marketing tradicional. Para percebermos o marketing digital, temos de perceber o marketing tradicional. Este é e deve continuar a ser a base.

A maioria das empresas do setor são microempresas, muitas vezes com recursos financeiros e humanos escassos. Estarão preparadas ou capacitadas para esta avalanche de conhecimento necessário para gerir esta situação?
Têm de estar. As empresas que não se adaptarem às novas tecnologias vão ficar pelo caminho.

Aconselha as empresas a ter uma estratégia ativa nas redes sociais e a valorizar o envolvimento com o público que estas plataformas permitem?
Sem dúvida. As empresas devem adotar medidas, apostar na formação dos seus colaboradores, dar prioridade ao cliente, dar foco às avaliações positivas e reduzir custos com estratégias inteligentes que passam pela automação de processos. Estar ativo nas redes sociais é muito importante para as empresas do setor do turismo. Hoje, quem não gastar algum tempo a criar uma estratégia de comunicação online, arrisca-se a perder muito dinheiro no futuro.

Qual a rede social que aconselharia começar primeiro a trabalhar?
Depende do cliente-alvo. Mas eu diria que o Facebook, que é direcionado para uma faixa etária mais elevada, é a rede social mais fácil para trabalhar. Depois, e porque está associada a um público mais jovem, o Instagram. São ambas redes muito intuitivas.

mulher à porta da faculdade de ciências sociais e humanas da UBI

Formação e gastronomia são temas chave para a competitividade do setor do turismo no interior.

O PAPEL DAS ENTIDADES PÚBLICAS NA DIGITALIZAÇÃO DO TURISMO

De que forma é que as entidades públicas (Comunidades Intermunicipais, Municípios e PROVERE) podem ajudar a colocar as novas tecnologias ao serviço da competitividade dos destinos e da qualidade das experiências dos turistas?
Podem agir de várias maneiras e julgo que já está a ser feita alguma coisa. O investimento em infraestruturas tecnológicas, internet de alta velocidade e pontos de wi-fi gratuitos em áreas de elevado interesse turístico, é fundamental. Podem prestar apoio financeiro e técnico a startups e empreendedores que pretendem desenvolver soluções tecnológicas inovadoras para o setor e que contribuam para melhorar a experiência dos turistas. Por fim, mas muito importante, a formação. As entidades públicas devem promover programas de formação para capacitar os profissionais do setor do turismo em competências digitais. É preciso incentivar as empresas e os empresários a adotar e aproveitar ao máximo as novas tecnologias.

"É preciso incentivar as empresas e os empresários a adotar e aproveitar ao máximo as novas tecnologias."

O Turismo de Portugal faz isso através da Academia Digital. Eles disponibilizam vários cursos gratuitos.
O problema é que apesar de estar online, essa informação nem sempre chega às empresas do interior. Além disso, a formação online, que agora se usa muito, nem sempre é a mais adequada, porque há ainda pessoas com dificuldades na utilização das novas tecnologias. É por isso que defendo que as entidades públicas têm um papel fundamental no fomento da formação. Tem de existir alguém mais perto das empresas que alerte para a importância da formação, porque a formação é a base do sucesso de uma empresa.

Inovação não é só tecnologia, a criação de novos produtos e serviços que acrescentem e complementem a oferta existente pode ser um fator diferenciador e decisivo para a competitividade do setor numa região. Neste campo, quais as apostas que devem ser feitas para reforçar a competitividade económica e a sustentabilidade dos territórios do interior?
Deve-se investir, valorizar e preservar a gastronomia local. A gastronomia é um elemento distintivo da oferta local e uma fonte de atração de visitantes. E para fazer isso é necessário apoiar a produção local de alimentos, o desenvolvimento de rotas gastronómicas e a organização de eventos que destaquem a cultura alimentar e os produtos endógenos. Há já muita coisa a ser feita, mas é necessário continuar a fazer e divulgar.

Pode dar alguns exemplos?
Em termos de eventos, o Míscaros – Festival do Cogumelo, em Alcaide, é um bom exemplo, ao qual se juntam outros eventos embora com menos projeção. Em termos de produtos, diria que o Queijo da Serra da Estrela e a Cereja do Fundão são já marcas da região. A região das Beiras e Serra da Estrela tem um património gastronómico e produtos endógenos extraordinários que são fatores de competitividade, mas é necessário trabalhá-los. Por exemplo, apesar de já haver rotas alusivas aos vinhos da Beira Interior, ainda há um grande trabalho a fazer para posicionar a região como um destino enoturístico. O pêssego da Cova da Beira é outro produto endógeno que ainda não está a ser aproveitado.  

"A região das Beiras e Serra da Estrela tem um património gastronómico e produtos endógenos extraordinários que são fatores de competitividade, mas é necessário trabalhá-los".

A gastronomia tem poder para despoletar um efeito multiplicador na região?
A gastronomia é muito importante porque é potenciadora de parcerias e colaborações entre os diferentes stakeholders da região, como os produtores locais, as empresas de turismo, as instituições de ensino e investigação e as entidades governamentais. É uma atividade capaz de proporcionar a criação e produtos turísticos, mas é preciso trabalhar em conjunto, porque sozinho não se consegue. É preciso trabalhar em cluster. Há que identificar os clusters existentes e desenvolver uma estratégia colaborativa eficaz entre todos.

Estes clusters que fala e que estudou são baseados no conceito de Michael Porter?
Na minha tese de doutoramento identifiquei os clusters como um conjunto de empresas turísticas, relacionadas e de suporte, localizadas num ambiente competitivo, onde é necessário ter em conta a dimensão populacional e geográfica do destino turístico onde está inserido. Seja em que área económica for, os clusters empresariais são fundamentais para o desenvolvimento sustentável de uma região.

@iNature | Entrevista a Cristina Estevão, docente e investigadora da Universidade da Beira Interior | abril 2024.