elisabete Paiva, diretora do Festival Materiais Diversos, na Polje de Minde

Elisabete Paiva, diretora do Festival Materiais Diversos, a contemplar o Polje de Minde, uma das paisagens locais que vai acolher espetáculos do Festival.

FESTIVAL MATERIAIS DIVERSOS, UMA MISTURA ENTRE ARTES, NATUREZA E HUMANIDADES

É natural de Famalicão já viveu em muitos locais do país. Um deles, a Herdade da Tapada da Tojeira, em Vila Velha de Ródão, marcou-a e à sua vida profissional para sempre. Vivia-se o ano de 2003, “foi um momento charneira”, diz. Apaixonou-se e um simples projeto de residência artística com a companhia de teatro da qual fazia parte fê-la enraizar durante dois anos na Beira Baixa, onde percebeu que mais do que produzir espetáculos, queria trabalhar entre os artistas e os públicos e na aproximação entre as artes e as pessoas, artistas, não artistas, novos e velhos. Desenvolveu projetos em escolas, estabelecimentos prisionais e esteve nove anos no Centro Cultural de Vila Flôr, em Guimarães, onde participou na Capital Europeia da Cultura (2012) e criou o serviço educativo do Centro Educativo Internacional das Artes José de Guimarães. Em 2015, o coreógrafo Tiago Guedes, convidou-a para dirigir o festival que ele tinha fundado em 2009. Aceitou. À beira da 12ª edição, Elisabete Paiva, diretora artística do festival, explica a génese, o conteúdo e os propósitos do Festival Materiais Diversos, que acontecerá entre 5 e 15 de outubro, em Minde - Alcanena.

Que materiais e que diversidade é esta que dá nome e corpo ao Festival Materiais Diversos?
“Materiais Diversos” é o nome da associação cultural fundada pelo coreógrafo Tiago Guedes, fundador do Festival Materiais Diversos, cujo nome advém do espetáculo que o catapultou a nível internacional. “Materiais” porque o espetáculo era focado exatamente na descoberta e na reflexão sobre que materiais fazem a dança e o que ele propôs, sei que isto pode ser muito abstrato, é que a dança se pode fazer a partir de objetos e de movimentos do quotidiano. “Diversos” porque trabalhamos com artistas, escolas e comunidade numa lógica de ecossistema que, para ser saudável tem de ser diverso.

Há uma lógica de formação artística, mas também cívica e sempre com a ideia de diversidade subjacente, como se fosse um bem, um património e um direito. Pretende-se transportar a diversidade natural para a diversidade social e sublinhar a sua importância nas sociedades democráticas. Só assim conseguiremos ter sociedades tolerantes, integradoras, inclusivas, respeitadoras e, portanto, capazes de acolher todas as subjetividades, identidades e formas culturais.

Conheça o programa do Festival Materiais Diversos AQUI.

Entretanto, já lá vão 14 anos de Materiais Diversos.
Sim, o Festival Materiais Diversos teve a sua primeira edição em 2009 e foi anual até 2017, ano a partir do qual decidimos torná-lo bienal.

Porquê?
Sentimos a necessidade de desacelerar para conseguir fazer uma programação mais quotidiana. Um festival anual, pela escala que tem, pelas decisões e velocidade que imprime na equipa, não nos dava capacidade de fazer grande coisa o resto do ano. Assim, com uma vertente bienal, conseguimos juntar um programa regular à nossa normal atividade, o que nos permitiu estar mais tempo com as coletividades locais nossas parceiras, com a população e com a comunidade em geral. Ou seja, passamos mais tempo cá, o que é muito bom para todos.

"A periodicidade bienal permite um melhor conhecimento do território por parte dos artistas e permite que as pessoas conheçam os artistas antes de os verem no festival, porque há ensaios abertos, conversas, oficinas, e isto origina uma ligação com a comunidade local".

Regular. Há atividades relacionadas com o festival o ano todo?
Sim. Há essencialmente duas grandes atividades que são complementadas com outras. Há residências artísticas regulares ao longo do ano de projetos que vêm para cá em fase de pesquisa durante dez dias ou duas semanas e que depois se apresentam no Festival. E isto implica uma presença maior, com benefícios para todos.

Há mais interligação entre a comunidade local e a artística?
Também. A periodicidade bienal permite um melhor conhecimento do território por parte dos artistas e permite que as pessoas conheçam os artistas antes de os verem no festival, porque há ensaios abertos, conversas, oficinas, e isto origina uma ligação com a comunidade local. Nós até investimos muito na criação dessa ligação quando o festival era anual, procurámos que os artistas e as equipas fossem acolhidas pelos habitantes locais, nas casas deles. Em 2017 redesenhámos um pouco esta estratégia porque já havia mais oferta turística e faz parte das nossas responsabilidades valorizar estes pequenos negócios. Porém, na versão anual, os artistas vinham cá três ou quatro dias e pronto. Era pouco.

Nesta versão, bienal, transferimos as estadias mais longas para o alojamento local formal e nas mais curtas continuamos a convidar as famílias a acolher os artistas em suas casas. Depois, com a pandemia, interrompemos esta estratégia e agora estamos à espera que as pessoas voltem a ganhar confiança, porque também não queremos criar situações de tensão ou de risco para as pessoas.

Cartaz da 12ª edição do Festival Materiais Diversos

Festival Materias Diversos nasceu em 2009 pela iniciativa de Tiago Guedes. Começou com edições anuais, mas em 2017 passou a bienal. Esta será a 12ª edição.

Programa Festival Materiais Diversos AQUI.

Voltando ao nome do festival e à componente da diversidade agora misturada com o acolhimento. Há um fenómeno de imigração em curso. O festival também trabalha esta vertente?
Estamos a aumentar progressivamente esse trabalho. Este ano queremos trazer a comunidade migrante para o “Banquete das Saudades”, um projeto que se traduz num jantar, mas num espaço transformado, cenografado, e com um menu baseado em receitas que representam a saudade. Pode ser a sopa que a avó fazia, o pão no forno a lenha, uma fruta ou um doce. Vamos fazer isto com toda a comunidade, inclusive a comunidade migrante. Vamos também ter espetáculos de música e dança próximos destas pessoas. Vamos acolher um espetáculo, que não interessa somente à comunidade migrante, que parte da história do Kuduru, um estilo de música e de dança angolano amplamente difundido por todo o mundo graças aos Buraka Som Sistema e que as gerações mais jovens deixaram entrar no seu universo. Teremos também um espetáculo de dança com um coreógrafo angolano que vive em Portugal e que terá o músico Chullage em palco. Portanto, há também muita diversidade nesse sentido.

Pelo programa, parece ser um festival que procura uma fusão entre artes, natureza e as comunidades. É uma boa definição ou é redutora?
Não traduz tudo, mas não é assim tão redutora. É nossa preocupação fundir esses três pontos numa ideia de ecossistema. Este conceito é para nós muito importante, porque num ecossistema saudável, a vida cultural é fundamental. E, por vida cultural, entenda-se práticas culturais eruditas, populares e outras formas de conhecimento formais e informais, como a tradição oral, os saberes, muitos deles ligados à natureza, como é o caso do conhecimento das plantas e dos seus usos, dos animais, das florestas e da biodiversidade.

É aqui que entra a parceria com o Movimento Mira Minde?
Sim. Nós vemos as parcerias como uma forma de alavancar o nosso projeto e o projeto do nosso parceiro, e eles têm preocupações semelhantes às nossas. Uma delas é religar as vilas de Minde e Mira de Aire, as duas povoações que abraçam o Polje de Minde, um monumento natural e um ecossistema natural emblemático desta região.

O festival tem vários espetáculos cujo palco são espaços naturais. Pode falar de alguns?
O Traquinar, por exemplo. É uma atividade lúdica orientada pela Ana Santos, uma pessoa natural de Minde que não está ligada à atividade artística, mas que descobrimos graças a outras pessoas da comunidade. Lá está a importância do diálogo e da cumplicidade entre a organização e a comunidade. O Traquinar é uma atividade focada na aproximação das crianças da primeira infância à natureza e assente no podes sujar-te e fazer o que te apetece. É direcionado para crianças com idades entre um e cinco anos e terá lugar na Mata de Minde.

Elisabete Paiva, diretora do Festival Materiais Diversos

Elisabete Paiva estudou teatro, mas é a aproximar as artes dos diferentes públicos que se sente bem.

DESAFIOS E IMPACTOS DO FESTIVAL MATERIAIS DIVERSOS

Quais são os grandes desafios de organizar um evento como o Materiais Diversos numa região como esta, rarefeita em muitos aspetos?
Eu diria que há três frentes de dificuldade, a mobilidade, infraestrutura logística e a dependência do ecossistema dos municípios. Aqui, as pessoas têm de ter automóvel para se deslocar, a rede de transportes públicos é muito rarefeita. Há projetos em curso para mitigar esta situação, mas a mobilidade das pessoas para virem ver os espetáculos é reduzida, o que nos levou a pensar cada dia do programa de forma que as pessoas os consigam fazer a pé.

As infraestruturas de alojamento são também um desafio, dada a escala e a velocidade de um festival internacional como este. Por exemplo, nós temos Fátima aqui perto, cidade que tem um parque hoteleiro bastante robusto, mas o facto de termos um fim-de-semana do festival na proximidade do dia 13 de outubro, torna as coisas muito difíceis ao nível do alojamento e da restauração.

A outra questão é que nestes territórios onde o tecido empresarial é mais rarefeito, muito do investimento na cultura e em outras áreas vem do setor público, e isso torna os parceiros locais muito dependentes dos municípios, e isto requer um enorme trabalho de diálogo, diplomacia e discussão de estratégias e objetivos comuns. Quando a relação com os municípios é boa e construtiva, o trabalho fica facilitado, mas quando não é torna-se muito difícil. Isto acontece também nas relações entre estruturas grandes e profissionais e estruturas pequenas e não profissionais. O trabalho sobre as parcerias tem de ser muito fino e demora muito tempo a conseguir a confiança das pessoas. É possível, mas requer muita resiliência e um planeamento minucioso com os parceiros, porque as coisas não funcionam com o “eu envio um e-mail e fico a aguardar resposta”.

"O facto de ser um festival profissional, ter visibilidade nacional e internacional, presença na imprensa, deu muita visibilidade ao território".

Qual é o balanço que fazem do impacto do festival na comunidade e na economia locais?
O facto de ser um festival profissional, ter visibilidade nacional e internacional, presença na imprensa, deu muita visibilidade ao território. Este foi o primeiro impacto e é o mais importante. O segundo impacto visível é ao nível do património local, quando nós trazemos este público todo, os técnicos e os artistas, todos contribuem para a economia local.

Há depois um terceiro impacto, mais lento, mas que já se nota, ao nível da educação artística e cívica. Esta tónica da diversidade que tem sido uma marca não é linear porque há conflitos, extravagâncias, adversidades que algumas franjas da população podem ter mais dificuldade em compreender, porque são mais conservadoras, por exemplo, e acabam por projetar na aparência de determinadas pessoas da equipa ou dos artistas alguns preconceitos. Nunca é linear e líquido que vai correr tudo bem, há sempre fricções, mas estas fricções, ao longo do tempo têm-se transformado em objeto de pensamento crítico e de reflexão, têm-se transformado em motivo de conversa e, nesse sentido, em possibilidade de educação para a diversidade e para a cidadania.

Sente que a comunidade já interiorizou o festival como seu? Sente que existe sentimento de pertença?
Há sentimento de pertença e orgulho que o festival seja aqui e daqui. E há também uma exigência crítica, podia-se ter feito isto ou aquilo, ter feito diferente, e isso faz parte desse sentimento de pertença. É como nós em casa, nós somos os mais críticos de nós próprios.

Placa a assinalar a entrada para a Polje de MInde, Minde.

A Salamandra de fogo, comum ou de pintas amarelas é o símbolo do Polje de Minde, uma zona húmida de particular interesse ecológico entre as vilas de Minde e Mira de Aire.

UM FESTIVAL DE TODOS E PARA TODOS

É injusto estar a destacar este ou aquele artista, mas o que é que a edição deste ano traz de diferente ou de inovador?
Este ano procuramos dar muita visibilidade aos nossos parceiros e às suas ideias, às escolhas dos lugares de apresentação, aos temas das conversas e aos lugares onde elas vão acontecer. Mesmo a escolha de alguns artistas que vêm este ano resultam de conversas que tivemos com os nossos parceiros e com a comunidade e, portanto, espero que as pessoas recordem que “falámos sobre isto”. Por exemplo, não teríamos descoberto a Ana Santos e o Traquinar sem as pessoas daqui, não teríamos a possibilidade de oferecer aos visitantes uma componente de atividades ambientais se não fosse o Movimento Mira Minde, e não poderíamos fazer concertos e espetáculos com um certo enquadramento sem o Museu da Aguarela Roque Gameiro. Espero que as pessoas sintam esta visibilidade que é distintiva nesta edição em termos macro.

Outra coisa que é distintiva e que ainda pode ser mais aprofundada é a relação com o espaço natural. Temos um dia inteiro no Centro de Ciência Viva de Alviela – Carsoscópio (CCVA), com um jantar e um filme escolhido por eles, sobre uma investigação junto das baleias corcundas, um assunto que se funde com o espaço, a preocupação ambiental e a preservação da natureza, valores intrínsecos do CCVA. O Materiais Diversos é um festival de arte contemporânea, é o que somos e não podemos fugir a isso, mas há uma notória presença de atividades ligadas às questões ecológicas devido às colaborações com parceiros especializados na área ambiental.  

"Este ano temos uma política de bilheteira ligeiramente diferente. Todas as atividades são gratuitas para menores de 18 anos numa lógica de incentivo a que a população mais jovem participe na vida cultural."

O programa tem também uma componente familiar muito forte.
Sim, as famílias vão encontrar uma oferta mais presente e diversificada que nas edições anteriores. Este ano temos uma política de bilheteira ligeiramente diferente. Todas as atividades são gratuitas para menores de 18 anos numa lógica de incentivo a que a população mais jovem participe na vida cultural. As famílias estão em destaque, por exemplo, nos domingos de manhã, na Mata, o projeto Traquinar para crianças até aos 5 anos, nos dias 6 e 7, o espetáculo KdeiraZ no Largo da Igreja de Minde que é um espetáculo de dança a partir de um objeto comum, a cadeira, que é direcionado para todas as infâncias. Este espetáculo que foi criado em proximidade com as crianças da Escola EB1 de Minde que foram assistir a um ensaio, conversaram com os artistas, fizeram oficinas e elas trazem material para o espetáculo inspirado nessas oficinas e nesses ensaios de teste.

E nota-se também o propósito de mostrar artistas emergentes da região. É outro papel do festival?
Sim. Este ano, os dois mais evidentes são o projeto Mirascálias, um projeto de dança que decorre de uma bolsa que nós lançámos para apoiar criadores do distrito ou a viver no distrito de Santarém. Este ano foi apoiada a coreógrafa Leonor Mendes, de Riachos, que, em parceria com dois artistas brasileiros criou um espetáculo de dança a partir das didascálias de peças de teatro. Temos também o projeto La Burla que decorre de uma bolsa que temos para coreógrafos que ainda não tenham estrutura de produção. Nós acompanhamos a produção ao longo do ano sem executar nada, mas semanalmente ou quinzenalmente, de acordo com a vontade dos artistas, a equipa de produção do Materias Diversos aconselha e acompanha sobre candidaturas, sobre como se apresentar um programador, como organizar uma difusão e às vezes até sobre as equipas a escolher para o espetáculo.

Fazem uma espécie de mentoria?
Sim, porque a missão da Materiais Diversos passa por duas vertentes, o apoio à criação e investigação artística e a aproximação dos públicos às artes. Este acompanhamento aos artistas é algo que fazemos desde sempre, e não apenas aos mais jovens e emergentes.

O festival vai ter muitas conversas, mesas longas, como lhe chamam. Qual é o objetivo destas conversas? É uma lógica de “é a conversar que a gente se entende”? É pôr as pessoas a pensar?

(risos) Vou brincar. Em vez de “a conversar é que a gente se entende”, prefiro o “a conversar é que a gente pode desentender-se”. É fundamental e há cada vez menos espaços de discussão de dissenso entre nós. Há muito espaço de fala que está blindado e as pessoas querem falar com quem concorda com elas e conflituam e são até agressivas quando há discordância. Para nós, as conversas são importantes para as pessoas discutirem um assunto sob os mais variados pontos de vista. O festival tem uma componente contemplativa, do prazer da festa, mas também reflexiva e as conversas dão corpo a isso, abordando assuntos que nos merecem algum cuidado e reflexão. Este ano até só temos três conversas, quando em 2021 tivemos onze conversas.

Séneca disse um dia que “toda a arte é uma imitação da natureza”. O que lhe diria? Concorda?
Essa afirmação é muito dicotómica, separa, e é por isso que eu não consigo concordar. Peço desculpa ao Séneca, por muito brilhante que ele tenha sido, mas não consigo concordar com ele. Eu diria que há mais coisas que já lá estão, na natureza, e o que as artes fazem é dar a ver o que já lá está, dão um foco. Os artistas fazem muito isso, lançam um olhar, uma pista sobre algo que está ali, mas como está imersa no quotidiano e é tão familiar torna-se invisível. Neste sentido, digo que é uma possibilidade de interpretação, reinterpretação, redescoberta de algo que existe, sendo que natureza, para mim, não é algo separado do ser humano. Nós somos natureza e a natureza em diálogo connosco.

Então a sua máxima seria “toda a arte é uma reinterpretação da natureza”?
Por exemplo (risos). Não tão afirmativa como a citação do Séneca, mas, sobretudo, não dicotómica.

Muito obrigado e muito sucesso para o Festival Materiais Diversos.

iNature. out 2023. Festival Materiais Diversos.