Conhecer o projeto Medronhalva é ver um turismo do futuro. Um turismo com uma abordagem holística ao conceito da valorização territorial, onde ao lazer se juntam a gestão sustentável da floresta, os produtos que dela nascem e o valor das gentes locais.
Farinha Podre. Para perceber a origem do nome de outrora de São Pedro de Alva basta ler “A Minha História do Vimieiro e Região Periférica”, da autoria de Alfredo Santos Fonseca. Mas, para entender a filosofia do projeto de vida de Carlos Fonseca, o terceiro dos quatro filhos (um deles, uma filha) do influente escritor da terra, é preciso ir a Hombres, uma aldeia vizinha onde as águas do rio Alva brindam os visitantes na famosa Praia Fluvial do Vimieiro.
Ali, na encosta da margem direita do rio está “O Medronheiro”, uma casa de xisto para turismo rural aberta em 2017, cujo contexto paisagístico envolvente a torna num refúgio perfeito para umas férias de puro descanso em comunhão com a natureza. Porém, por trás deste alojamento idílico existe um projeto ambiental e social iniciado em 2012, que exemplifica uma visão holística do turismo em áreas rurais e florestais.
Carlos Fonseca tem um currículo vasto e internacional. Biólogo de formação, passou boa parte dos seus 49 anos no estrangeiro em projetos de investigação e a ensinar na Universidade de Aveiro, onde se doutorou e atingiu no ano passado o grau de professor catedrático. Nada nem ninguém esperava que voltasse às origens tão cedo, nem mesmo o pai. Quando fez as doações pelos filhos, Alfredo preocupou-se em atribuir ao filho mais novo mais artigos urbanos do que rústicos, porque pensava que ele não tinha interesse na terra, mas enganou-se.
“Vi uma oportunidade de pôr em prática o que ensino e isso, para mim, é o corolário da minha carreira”, explica Carlos Fonseca, e após algumas trocas com os irmãos, comprou algumas parcelas contíguas aos terrenos herdados e dedicou-se à cultura do medronheiro em modo de produção biológico.
Doze anos depois, a Medronhalva tem o primeiro medronhal certificado do mundo com a Norma de Gestão Florestal do Forest Stewardship Council e certificação internacional FSC de Cadeia de Custódia para produtos não lenhosos derivados do medronho. No total, são cerca de 20 hectares repartidos por 16 parcelas com duas vertentes de exploração - medronhal espontâneo, subcoberto por eucaliptal e em plantação (monocultura) - que constituem uma espécie de laboratórios naturais para o estudo e a melhoria da cultura.
Porquê medronho? A resposta tem várias vertentes. Na região algarvia, onde é mais característico, o medronho sempre foi visto como uma cultura espontânea. O primeiro pomar surgiu em 2006 pela iniciativa de Jorge Simões, em Oleiros, ao qual se seguiram outros silvicultores e a REN - Redes Energéticas Nacionais, que começou a aproveitar as faixas de segurança sob as linhas elétricas para plantar medronhal e assim contribuir para a rentabilidade de milhares de hectares que de outro modo ficariam inaproveitados. Hoje, estima-se que existam cerca de 20 mil hectares de medronhal com capacidade de exploração, cinco mil dos quais plantados e, destes, cerca de dois mil são da responsabilidade da REN. E, ao contrário da perceção existente, a maioria situa-se na região centro de Portugal.
Em 2017, os medronhais da Medronhalva não escaparam à fúria dos incêndios. “Tivemos de recomeçar tudo”, lamenta. Porém, do desastre saiu uma aprendizagem que fundamenta o caminho que está a ser feito. “Depois do fogo, o medronheiro rebenta com uma pujança extraordinária”, afirma. Ou seja, à alguma proteção que confere contra os incêndios, é uma árvore que recupera rápido após um incêndio, o que permite ganhar tempo na recuperação da rentabilidade de um terreno florestal.
Uma outra vertente do interesse no medronheiro está na proteção que a cultura pode conferir contra os incêndios. “Um fogo tradicional tem dificuldade em ultrapassar um medronhal”, defende Carlos Fonseca. Em Signo Samo, por exemplo, grande parte das plantações funcionam como zonas tampão/proteção da aldeia, substituindo pinhais, eucaliptais ou zonas de mato. Em Hombres, algumas das plantações da Medronhalva também têm o mesmo propósito.
Os incêndios são um dos campos de estudo de Carlos Fonseca que aos papéis de empreendedor e professor junta também a função de Coordenador Executivo do ForestWISE – Laboratório Colaborativo para a Gestão Integrada da Floresta e do Fogo. “Esta nova geração de fogos a que temos assistido são outros fenómenos. Infelizmente, sei bem do que estou a falar”, adianta.
Como fruto fresco, o medronho ainda não possui um valor que atraia mais produtores. Tanto no Algarve como na Região Centro de Portugal, a destilação do fruto e a famosa aguardente daí derivada continua a ser a principal fonte de rendimento da cultura e, por enquanto, a Medronhalva não escapa à tendência. No ano passado, a Medronhalva colocou no mercado a “Imperatriz”, uma aguardente de medronho gourmet. Todavia, o professor universitário reconhece que produzir medronho para transformar em aguardente não é suficiente para pagar o investimento e atrair novos empreendedores. É preciso mais investigação e investimento para tornar o fruto atrativo para outros setores. "E isso só é possível com parcerias com centros de conhecimento, como a Escola Agrária de Coimbra e a Universidade de Aveiro, e parcerias com empresas como a Unimadeiras", defende.
Dois desses sectores são os da cosmética e o da farmacêutica. “Tem-se vindo a estudar muito a planta e têm-se descoberto coisas muito interessantes”, adianta. Carlos Fonseca está também de olho no valor potencial da polpa. “É muito interessante para a indústria alimentar e abre um enorme leque de oportunidades”, defende. Para isso, o empreendedor tem na calha a construção de uma pequena unidade de transformação num futuro Centro de Valorixação do Medronho, que pretende erguer em São Pedro de Alva. Porém, até lá, é necessário ultrapassar alguns desafios.
A volatilidade da produção do medronheiro é um deles. Por exemplo, em 2023, a colheita da Medronhalva foi um décimo da conseguida em 2022, uma quebra que irá condicionar a produção de aguardente em 2025, e que condicionaria qualquer negócio à volta do fruto.
A culpa, diz, é das geadas e da seca, e o biólogo está a estudar o problema. “É provável que a exploração em subcoberto de eucaliptal minimize o efeito das geadas”, adianta, mas é também necessário melhorar a genética da planta, algo que está também a fazer. Em conjunto com os viveiros da Oliplant, a Medronhalva desenvolveu uma variedade que frutifica mais cedo e produz frutos maiores. Carlos Fonseca chamou-lhe “Magnum” e os resultados têm sido surpreendentes. “A primeira plantação foi feita em novembro de 2020 e já frutificou este ano”, revela, entusiasmado. Normalmente, a primeira frutificação ocorre cinco a sete anos após a plantação, embora possa ser encurtado um ou dois anos de acordo com a qualidade do solo e a água disponível. Ainda assim, é bastante tempo para um empreendedor e é aqui que entra o turismo.
Na ótica de Carlos Fonseca, o turismo é a ferramenta certa para uma abordagem holística à valorização territorial. “É um pensamento que tem muito a ver com a minha formação e com a minha experiência mundial, enquanto professor e investigador”, diz. “As sociedades, ainda que a diferentes velocidades, estão a caminhar para uma valorização dos territórios e dos seus patrimónios naturais, endógenos e humanos, que contribua para a sua sustentabilidade”, defende. Foi a pensar assim, numa espécie de sustentabilidade em sentido lato, que Carlos Fonseca desenhou o seu plano de negócios e as suas três vertentes de investimento. A florestal, onde além do património natural, conta com o património humano local detentor de um saber fazer único, foi a primeira.
Por não carecer de cuidados especiais, a cultura do medronho é uma atividade de fim-de-semana”, mas sozinho seria tudo mais difícil. “Eu não conseguiria fazer isto sem a ajuda do José Luís”, confessa. Natural de Hombres e amigo de infância do professor universitário, José Luís é o exemplo do património humano local que tem de ser aproveitado.
“Ele conhece o terreno como ninguém e sabe fazer tudo. Há muitas pessoas por aí que, a bem de um conceito mais lato de sustentabilidade, têm de entrar na equação do desenvolvimento territorial”, acrescenta, apontando também o papel de João Pedro Borges, proprietário da Destilaria Catarão, na aldeia da Barriosa, Vide, na produção da “Imperatriz” e de outros néctares que dali saem com o sabor e a marca dos produtos endógenos locais.
A segunda vertente é a do turismo. “É uma atividade que liberta cash-flow rapidamente que pode ser canalizado para outras atividades”, defende. É o que tem feito com o alojamento rural “O Medronho”, que apesar de ter iniciado atividade apenas em 2017, foi fundamental para o investimento na área florestal onde o retorno é mais moroso. “O investimento no medronhal e agora na produção da aguardente começou há 10 anos e só deverá dar algum retorno daqui a quatro anos, enquanto o alojamento abriu em 2017 e nestes últimos anos já contribuiu para o investimento florestal”, explica.
Neste sentido, Carlos Fonseca espera dar início ainda este ano à segunda fase do projeto da área do turismo. Junto à casa “O Medronheiro” irão nascer mais três unidades de alojamento com esplanada virada para o rio e a ideia é usar o cash-flow liberto deste novo investimento para financiar a criação do Centro de Valorização do Medronho e a unidade de transformação do fruto, e assim materializar a terceira vertente do seu plano: a valorização do fruto. “Hoje, usa-se e abusa-se da palavra sustentabilidade, mas na Medronhalva ela está bem patente e num sentido lato. Quem quiser pode vir cá vê-la no terreno”, convida.
@iNature | janeiro 2024.