ruínas da real fábrica do gelo, na quinta da serra, serra de montejunto

Real Fábrica do Gelo, Quinta da Serra, Serra de Montejunto.

Da Real Fábrica do Gelo ao Martinho da Arcada

A história e os protagonistas que ligam o Monumento Nacional da Serra de Montejunto ao café mais antigo de Lisboa.

No século XVI, o gelo era um produto de luxo e ser neveiro – comerciante de gelo -, era um negócio muito lucrativo, mas o gelo era usado apenas para fins medicinais e para conservar alimentos, e poucos além da realeza o conseguiam comprar. Todavia, alguns anos e uma “invasão” depois, esta realidade iria mudar.  

À semelhança dos Árabes, que introduziram em Portugal muito do conhecimento, hábitos alimentares e produtos agrícolas que ainda hoje persistem, nos séculos XVI e XVII, a Dinastia Filipina trouxe à corte e à nobreza o gosto pelos refrescos, as sobremesas fresquinhas e os deliciosos sorvetes, hábitos que não só se enraizaram e ficaram depois da Restauração da Independência, em 1640, como fizeram do gelo uma indústria.

Neveiro da Casa Real

Sob a égide de Sebastião José de Carvalho e MeloMarquês de Pombal -, Portugal fez uma reorganização industrial, que entre outros fatores consistiu na escolha de um conjunto de empresários para desenvolver setores-chave da economia. A produção de gelo foi um deles, bem como a logística do abastecimento à corte e à capital, e o empresário escolhido foi Julião Pereira de Castro.

Real Fábrica do Gelo

Onde fica:
A Real Fábrica do Gelo localiza-se na Serra do Montejunto, na freguesia de Lamas e Cercal do município do Cadaval, no distrito de Lisboa, em Portugal.

Como Chegar:
Ver no mapa o melhor caminho desde a sua localização.

De descendência espanhola, este influente empresário da capital, que já era comerciante de gelo, é nomeado “Neveiro da Casa Real”, um título criado durante a Dinastia Filipina, que lhe trouxe uma enorme responsabilidade, mas também oportunidade e fortuna.

Para cumprir o contrato com a Casa Real, Julião contava com a sua fábrica na Serra do Coentral, na Serra da Estrela, e com fornecimentos de pequenos fornecedores da Serra da Lousã e da Serra da Estrela, mas era pouco para a elevada procura que, entretanto, se tinha instalado nas classes mais abastadas do país, e estava longe da capital, o que representava um enorme desafio de logística.

Da Serra até Lisboa, o gelo era transportado durante a noite por burros até aos rios mais próximos de onde seguia para a capital. Como Neveiro Real, Julião tinha uma espécie de via verde nos postos de controlo, mas o gelo tinha de chegar em perfeitas condições e nem sempre era possível, o que obrigava o neveiro a pagar elevadas multas que revertiam para instituições de caridade. Dizem os registos que o Hospital de Todos os Santos, em Lisboa, também conhecido por Hospital dos Pobres, foi uma das instituições mais beneficiadas por estas penalizações, até ceder no terramoto de 1755.

Mas, seja qual fosse o destino do valor das multas, o que Julião queria era não ter de as pagar e para isso tinha que resolver um dos grandes problemas do negócio: a distância.

tanques de produção de gelo na serra de montejunto

Tanques onde eram feitas as placas de gelo.

Da Serra de Montejunto à Praça do Comércio

Visionário, Julião toma duas decisões estratégicas que o tornariam num dos homens mais ricos da época. A primeira acontece em 1778 quando compra dois cafés em locais emblemáticos de Lisboa, um no Rossio e o outro na Praça do Comércio (Terreiro do Paço), o Café da Neve. O empresário queria lucrar com a moda dos cafés burgueses que se estava a instalar em Lisboa.

E a segunda acontece quatro anos mais tarde em 1782 com a compra de uma pequena fábrica de gelo a uma congregação de frades dominicanos na Serra de Montejunto. As ruínas do mosteiro ainda lá estão e a então denominada Real Fábrica do Gelo, classificada como Monumento Nacional desde 1997, também, e ambos podem ser visitados.

Após ampliação, a fábrica contava com mais de quatro dezenas de tanques de fabrico de gelo, que era transportado de cavalo até à aldeia de Pragança, onde era armazenado em silos até ao verão. Dali, o gelo era transportado de burro e em carros de bois até à Vala do Carregado, nas margens do rio Tejo, de onde seguia de barco até Lisboa para abastecer a corte e os cafés mais influentes. Entre eles, os dois que Julião tinha adquirido alguns anos antes.

recriação do fabrico de gelo na real fábrico do gelo, na serra de montejunto

Recriação da produção de gelo nos tanques do complexo da Real Fábrica do Gelo.

História viva

Com a Real Fábrica do Gelo próxima de Lisboa, dois pontos de distribuição e o título de Neveiro da Casa Real, o já abastado Julião engordou ainda mais a sua fortuna, que alguns anos depois acabou nas mãos do neto, Martinho Bartolomeu Rodrigues.

O título de Neveiro da Casa Real acabaria por ser extinto alguns anos mais tarde e o negócio do gelo perderia a frescura em 1888 quando a refrigeração artificial chegou a Portugal através da Companhia Frigorífica Portuguesa, sediada em Alcântara, Lisboa. Mas os cafés, não.

O Café do Martinho, no Rossio, já não existe, mas o Café da Neve, que além de vários inquilinos teve vários nomes, entre eles, Casa Italiana, Café do Comércio, Café dos Jacobinos e, finalmente, Martinho da Arcada, permanece. É o café mais antigo de Lisboa e um local carregado de história.

Se o Café do Martinho, no Rossio, teve Eça de Queirós, como um dos seus mais ilustres clientes, pelo Martinho da Arcada, passaram artistas e políticos de renome, ideias, criações e conspirações que abalaram o país.

Entre eles está Fernando Pessoa, que ainda hoje tem ali uma mesa reservada. Consta que foi numa daquelas mesas que escreveu a “Mensagem”, grande parte do “Livro do Desassossego”, e que tomou o último café pouco dias antes de morrer na companhia de Almada Negreiros.

Hoje já nas mãos de outras famílias e em modo restaurante, o Martinho da Arcada é um espaço carregado de história que vale a pena visitar, mas sem esquecer que a sua génese está na força da natureza da Serra de Montejunto e na Real Fábrica do Gelo que Julião Pereira de Castro ali construiu. Passe por lá e sinta esta, ainda fresca e viva, época da História de Portugal.

@iNature | Fonte Wikipedia, realfabricadogelo.pt, "Todos nós vamos morrer", Hugo Van Der Ding | Fotos iNature, CIM Oeste | julho2024.