Pedro Prata, Diretor da Rewilding PortugalREWILDING PORTUGAL - Deixar a natureza ao seu cuidado

Andou pela Europa e pelas Américas, onde realizou vários estudos relacionados com a sua área de formação, a biologia. Em 2012 regressou a Portugal para liderar projeto Faia Brava da Associação Transumância e Natureza (ATN) de onde saiu em 2018 para assumir a direção executiva da Rewilding Portugal. Pedro Prata (foto 1), 40 anos, fala de conservação da natureza com emoção e sem tabus. Assume-se caçador e pescador, quase como se se tratasse de uma consequência natural de quem nasce e é criado no campo. Natural da Guarda, mas criado em Chãos, é em Vila Soeiro, a aldeia natal dos avós, que passa boa parte do seu tempo livre e onde tem domiciliado o coração. A iNature foi ao encontro dele à outrora Quinta Pedagógica da Maúnça, na Guarda, onde a Rewilding Portugal está sediada e dali partimos para uma viagem encantadora. Passámos pela Ponte de Sequeiros, para ver o estado do caudal do rio Côa, observámos os cavalos Sorraia que vivem em estado selvagem no Vale Carapito e visitámos o Paúl de Toirões, um antigo couto mineiro, duas das quatro propriedades que a Rewilding Portugal tem em processo de renaturalização. Do caminho resulta esta entrevista, onde o biólogo explica a abordagem de conservação da natureza da Rewilding Portugal, os desafios que tem enfrentado para a implementar e a sua visão para um Portugal mais natural. "É preciso uma atitude diferente, uma atitude de não guerra porque, neste momento, o que se faz é uma guerra com a natureza", defende.

Quem é a Rewilding Europe e a Rewilding Portugal?
A Rewilding Europe é uma fundação de direito privado com sede nos Países Baixos, que teve um apoio da Dutch Postcode Lotary, uma lotaria daquele país, que deu origem a um fundo criado por um conjunto de Organizações Não Governamentais (ONG) para financiar projetos nas áreas da arte, da cultura e ambiente. Em 2012, os fundadores da Rewilding Europe candidataram-se a este fundo e foram selecionados. Na sequência desta seleção, abriram depois um concurso a nível europeu para financiar projetos de renaturalização em várias paisagens do continente. Em Portugal, a Associação Transumância e Natureza (ATN) e a fundação espanhola Naturaleza y Hombre juntaram-se e candidataram-se com um projeto chamado “Oeste Ibérico”, e foram escolhidos. O projeto “Faia Brava” nasce daqui, mas a certa altura autonomizou-se. Em 2018, nasce a Rewilding Portugal como o mesmo propósito.

Qual é a abordagem de conservação da Rewilding e como é que ela se diferencia das restantes?
O Rewilding é restauro ecológico posto em prática com pragmatismo. Nós assumimos que as relações dos ecossistemas são mais complexas do que nós, humanos, conseguimos entender, e sabemos que há ferramentas que podemos utilizar que vão muito além da capacidade humana, e focamo-nos nisso. Damos primazia aos elementos e aos processos naturais de restauro em vez de serem os humanos e a sua ação a dominar ou gerir esse restauro.

Vale Carapito, Vilar Maior, uma das propriedades da Rewilding Portugal.Pode desenvolver um pouco mais?
É sabido que as paisagens heterogéneas, em mosaico e pastoreadas, são mais ricas do ponto de vista biológico que as monoculturas, mas o que se faz para lá chegar é tudo input humano – remoção mecânica de biomassa, pastorícia com pastores, lavragem, gradagem, sementeiras, etc. Fazer isto em larga escala é impraticável, caro, e tem consequências nefastas a longo prazo. Então, em vez de nos focarmos na intervenção humana, o Rewilding defende a introdução de ferramentas no ecossistema que fazem isso naturalmente. Os grandes herbívoros são uma delas, mas o desejo é que o ecossistema tenha um conjunto de espécies o mais completo possível e uma floresta diversa com aves que dispersem as sementes. Depois, há que deixar também atuar os fenómenos ou distúrbios naturais.

Não há intervenção humana?
Há intervenção humana no início, mas depois é deixar acontecer. No início, diria até que é muito intervencionista, mas depois a “coisa” vai sozinha.

"Embora seja um fenómeno natural, o fogo em Portugal tem uma frequência e intensidade completamente artificial. Temos uma quantidade de ignições que não têm nada de natural e o que nós pretendemos é reduzir essa frequência à sua taxa natural."

Falou em distúrbios naturais e um dos que nós mais vivemos é o fogo. Neste contexto de alterações climáticas e dado ser um território propenso aos fogos, é possível fazer uma renaturalização pura, como defendem?

Embora seja um fenómeno natural, o fogo em Portugal tem uma frequência e intensidade completamente artificial. Temos uma quantidade de ignições que não têm nada de natural e o que nós pretendemos é reduzir essa frequência à sua taxa natural. Para isso temos uma equipa de vigilância, uma rede de contactos próximos, estamos dentro do CDOS. Fazemos vigilância ativa e damos apoio ativo ao combate quando é necessário. Queremos reduzir o fogo para taxas de incidência naturais, mas para que isso aconteça é preciso haver redução do combustível e essa redução faz-se coma presença dos grandes herbívoros. No início temos de atuar onde há dominância de arbustos, giestas, por exemplo, mas depois é um trabalho de longo prazo para os grandes herbívoros como os cavalos e os auroques – os familiares.
O que acontece agora é que depois de um incêndio os arbustos invadem a paisagem e cinco anos depois, o terreno está igual, mas se tivermos herbívoros com massa no território, capazes de romper, de comer, arrancar e pisar as giestas, comer a erva, que é a matéria fina que arde mais rápido, vai acontecendo uma gestão natural e uma heterogeneidade da paisagem, o tal mosaico. Mosaico até é uma palavra menos boa para descrever uma forma natural, porque está associado a uma forma geométrica artificial, mas os mosaicos aqui terão uma forma natural.

Não é possível fazer isso nos modelos de conservação atuais?

Acho que não e evita-se reconhecê-lo. Grandes territórios do país estão a renaturalizar-se, porque ninguém está a fazer nada. O problema é que estão a renaturalizar-se utilizando poucas ferramentas naturais e estão a acumular massa vegetal, não estão lá os herbívoros, os carnívoros e os necrófagos, e o ecossistema fica incompleto. O que nós propomos em todas as áreas marginais é devolver algumas dessas funções. Naturalmente, ao início temos que intervir para fazer desmatações, plantar árvores em falta, melhorar o estado das zonas aquáticas através da criação de charcas, e trazer de volta algumas espécies como os grandes herbívoros que, de outra forma, não viriam para cá. A Rewilding Portugal está a fazer isso com recurso a animais domesticados, mas depois deixamo-los e eles tornam-se mais selvagens. No Vale Carapito (foto 2), por exemplo, estamos a usar os cavalos Sorraia (foto 3) mas, por exemplo, na Faia Brava usou-se a vaca Maronesa, um familiar do Auroque, que existiu em tempos em Portugal. Seis meses depois, estas vacas tornam-se selvagens, o que é bom, mas também tem os seus problemas.

Cavalos Sorraia no Vale Carapito, Vilar Maior.Porquê?
Porque podem provocar problemas aos vizinhos. Na Faia Brava, uma vaca Maronesa em estado selvagem, não é muito problemático, mas em grandes áreas como a Serra da Estrela, por exemplo, seria um perigo colocá-las lá. Quando estive a trabalhar na Faia Brava, um boi maronês saltou a vedação e matou um boi de um vizinho. Mas há alternativas. A Cachena, o bovino que vive no Gerês de forma selvagem, não tem o comportamento bravo da Maronesa, o que a torna numa solução possível de introdução em grandes áreas.  

São esses tipos de problemas que originam alguma da discórdia em relação à vossa metodologia de conservação?
Não. Estes problemas acontecem a posteriori e essa discórdia tem surgido a priori. Eu acho que essa discórdia deve-se a uma normal resistência das pessoas à mudança, o que é compreensível porque é um método disruptivo.  

Qual ou quais são os fundamentos dessa discórdia?
Na universidade ensina-se que sem humanos não há diversidade. É verdade que toda a paisagem europeia é muito humanizada, mas há a crença que a natureza depende da gestão humana da paisagem e isso não é correto, porque não se verifica na prática, pelo contrário. Há espécies que não dependem da atividade humana para sobreviver e outras que sobrevivem apesar das atividades humanas.

"A paisagem nunca vai deixar de ter e viver com a presença humana. Há humanos há 30 mil anos no Côa e essa presença vai continuar a existir. O que há neste momento é a assunção que toda a paisagem existe para benefício do ser humano, que a vegetação e os animais que a compõem têm de ser úteis para o ser humano."

A necessidade de intervenção e gestão humana na paisagem, na natureza, é um dogma?  
A agricultura com pouco impacto mecânico ou químico é, de facto, um benefício para muitas espécies. O problema é que, neste momento, essa agricultura é uma agricultura de hobby ou de jardim, não é a realidade, e advogar que toda a agricultura deve ser biológica e que todos devíamos voltar a um regime de pastoreio, é utópico. É uma tese que se defende a si própria porque nunca vai acontecer. Como o método Rewilding é fazível, embora não se saiba o que vai acontecer e até pode originar alguns problemas, fica numa posição muito fácil de criticar a priori.  

Qual é o papel do ser humano neste processo de renaturalização ou conservação?
É sobretudo um papel de respeito. É também um papel de participação, porque as pessoas podem ir lá visitar as áreas e apreciar a natureza. E, em alguns casos, é necessário que o ímpeto inicial seja dado pelo ser humano, como já expliquei, mas após esta fase, o ser humano deve cingir-se à monitorização e abdicar da gestão.
A paisagem nunca vai deixar de ter e viver com a presença humana. Há humanos há 30 mil anos no Côa e essa presença vai continuar a existir. O que há neste momento é a assunção que toda a paisagem existe para benefício do ser humano, que a vegetação e os animais que a compõem têm de ser úteis para o ser humano. O que nós propomos é a existência de áreas com assentamentos humanos, onde existe agricultura e pecuária gerida por humanos, e áreas onde não há presença e ingerência humana. É preciso uma atitude diferente, uma atitude de não guerra, porque neste momento o que se faz é uma guerra com a natureza. Herbicidas, fertilizantes, mecanização extensiva, não pode ser. Os olivais no Côa são lavrados três vezes todos os verões e agora, com a chuva, quatro. É demasiado, os solos e a natureza não aguentam.

Rewilding Portugal, sapato feito com a lã comprada aos produtores do Vale do Côa.Defendem uma economia baseada na natureza, mas toda a economia é baseada na natureza. Qual é a diferença do vosso conceito?

O que nós queremos dizer é que, uma economia positiva para a natureza, que não seja apenas extrativa, mas que tenha um feedback positivo para a natureza e para o meio-ambiente. Propomos o incentivo à criação de novas economias à volta da natureza, como o turismo de natureza, a produção e comercialização de produtos endógenos. Sabemos que há neste território uma grande dúvida sobre o que será o terceiro setor da economia no turismo, porque não vai dar resposta a tudo, nós temos 34 empresários aqui na região, mas existem centenas e a maioria não está nesta economia, está no setor primário, na agricultura, na floresta e na pecuária. Nós queremos encontrar soluções para melhorar a relação desses setores com a natureza ao seu redor. Por exemplo, o grande problema da pecuária neste território é a relação que tem com os grandes predadores. Em termos de exploração, é extensivo e usa poucos antibióticos, não é muito problemática, tem poucos inputs, e eu acho que com o tempo isso até vai melhorar, o que as pessoas não gostam é de ter o lobo no seu “quintal”. Há que melhorar a relação destas atividades económicas com a presença do lobo e nós estamos a ajudar com informação, formação para adoção de mais e melhores medidas preventivas, vigilância, oferecemos cães de guarda, vedações, etc, e temos conseguido uma evolução. Temos também comprado a lã aos criadores de ovelhas e pagamos a tosquia. Estamos a pagar a lã a 1 euro o quilo, quando o mercado está a pagar dez cêntimos.

E o que fazem com essa lã?
Fazemos isto (mostra um protótipo sapato - ver foto). Fizemos uma parceira com a Wilding Shoes, uma empresa alemã que tem produção no  Vale do Ave e já temos este protótipo. É um projeto ainda numa fase muito inicial, mas está a andar.

Agricultura vs Natureza

Quantas propriedades é que a Rewilding Portugal tem?
Temos quatro propriedades que estamos a gerir, duas nossas, duas de proprietários com os quais temos acordos de gestão. Hoje vamos ver duas, o Vale Carapito e o Paúl de Toirões, que antes se chamava Quinta de Santa Margarida. Era um antigo couto mineiro que esteve em exploração até 2010.

Como é que a Rewilding Portugal compra os terrenos, como é que se financia?
Nós temos um fundo para aquisição de propriedades que resulta de uma candidatura ao Endagered Landscapes Program, um programa europeu financiado pela fundação Arcadia que é gerido pela Cambridge Conservation Initiative. Recorremos também a outras fontes privadas para alimentar esse fundo. Neste momento já executámos uma parte do valor que definimos e estamos à procura de novas oportunidades para executar o resto. Estamos, por exemplo, em negociações para adquirir uma propriedade grande na Serra da Malcata.

É fácil chegar aos proprietários, comprar as terras?
É extremamente difícil. Não há cadastro, é difícil chegar à fala com os proprietários, e há uma competição pela terra por causa dos subsídios à agricultura, o que nos obriga a entrar em competição direta com os agricultores.

Há um choque entre as políticas ambiental e agrícola?
Sim, a problemática dos incêndios é um exemplo. Para serem ilegíveis à subsidiação, os terrenos têm que estar limpos e o modo mais comum de limpeza é o fogo, o que dá muitas vezes origem a incêndios. A majoração dada aos apoios aos pomares na ótica da promoção da polinização é outra contradição, porque a maioria dos pomares são lavrados sistematicamente, o que impede o crescimento de ervas e flores. Depois, ao lado dos pomares, há um terreno cheio de ervas e flores e não tem direito a nada. Dá-se subsídios para manter os habitats e promover a polinização mas, na prática, o que acontece é o contrário. É contraditório.
Com os criadores de gado, a questão mais evidente é a relação com a presença do lobo, mas há também a questão da escala dos terrenos. Para maximizarem os apoios, os agricultores precisam de extensão e nós, ao sermos potenciais compradores de terra, somos vistos como uma ameaça. Temos até casos de pessoas com as quais tínhamos acordos de aquisição que desistiram do negócio porque foram ameaçadas. Não somos muito bem vistos pelas associações de criadores de gado (risos).

"Ninguém sabe para onde vai a conservação da natureza, ninguém definiu politicamente os objetivos, nem as ações para os conseguir alcançar."

Pedro Prata a observar os cavalos Sorraia no Vale Carapito.Qual é a sua apreciação da política de conservação da natureza e biodiversidade realizada em Portugal nas últimas décadas?
Tem-se vindo a fazer algumas coisas, mas não existe uma política efetiva. Ninguém sabe para onde vai a conservação da natureza, ninguém definiu politicamente os objetivos, nem as ações para os conseguir alcançar.

Mas há objetivos definidos.
Mas não há planos de ação para os conseguir atingir. Dizer que vamos reduzir emissões de carbono ou aumentar o estatuto e conservação das áreas protegidas é fácil, agora, estabelecer a metodologia para o conseguir fazer é que é política e isso não existe. Não existe método, não existem ações, nem planeamento, nem orçamento. É tudo feito ao “Deus dará”.

E como é que isso se pode ou deve fazer?
Eu acho que seria fácil para o Estado ter uma política efetiva de conservação da natureza. A União Europeia tem a diretiva Habitats e a diretiva Aves, e terá em breve a diretiva de Restauro, que definem as linhas gerais do que se pretende fazer e existirão programas de financiamento para implementar cada uma dessas diretivas. A Portugal bastava simplesmente colar essas diretivas ao caso português e assumir do ponto de vista financeiro, através do Ministério do Ambiente ou do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), a comparticipação nacional para a segurar esses objetivos, deixando para as autarquias, institutos e outras instituições, a elaboração desses projetos. Depois, o ICNF só tinha que validar ou não os projetos, financiá-los e fazer a monitorização e fiscalização dos objetivos. Penso que isto seria simples e seria um passo sério para a existência de uma política efetiva de conservação da natureza.

O ICNF não está a contribuir para a existência de uma política de conservação da natureza?
Uma organização que é o braço direito no Ministério do Ambiente para a conservação da natureza, não pode estar ausente dos projetos LIFE, o mais importante programa europeu de financiamento de ações para a conservação da natureza.

E qual a razão dessa não participação nos projetos LIFE?
Essa é uma questão que não compete a nós responder. O que nós gostaríamos de ver no ICNF é mais ação. O ICNF possui linhas de atuação e bem definidas, mas não saem do papel. Existe um Plano de Ação para a Conservação das Aves Necrófagas e as medidas que estão lá são boas. Está lá a promoção da disposição de cadáveres em campo para alimentação das aves, está lá definido o mapa onde isso pode acontecer, e o regulamento a cumprir. No entanto, nós temos imensos processos submetidos sem resposta. Alguns com quase dois anos. Existe também um Plano de Ação para a Conservação do Lobo-ibérico onde está previsto o aumento de espécies silvestres presas do Lobo-ibérico, mas os pedidos feitos pela Rewilding vêm sistematicamente reprovados, muitas vezes com justificações pouco científicas. E, depois, vemos pedidos de associações de caça para fazerem povoamentos de espécies exóticas, como faisões, muflões e gamos, e esses pedidos são despachados “na hora”.

Painel interpretativo do Vale Carapito.Há interesses que se sobrepõem ao da conservação da natureza?
Quando o interesse económico é grande e o lóbi é forte, o ICNF mostra-se ativo e célere, mas para a conservação da natureza, que muitas vezes choca com algumas atividades económicas, protelam. Não fazem, nem deixam fazer. Um exemplo claro disso mesmo é o caso de um grupo de investigação da Universidade de Coimbra sobre plantas invasoras, o invasoras.pt, andou 10 anos a pedir um licenciamento para testar um agente biológico – uma mosca – em ambiente controlado, para controlo da acácia/mimosa. Quando apareceu a vespa das galhas do Castanheiro, o ICNF decidiu e em menos de um ano andava a promover o controlo biológico. Porquê? Porque é um ativo económico. Nem foi necessário fazer testes, ensaios controlados, nada. Há aqui, claramente, “dois pesos e duas medidas”.

A Rewilding Portugal trabalha com o ICNF em algum projeto?
O ICNF é parceiro dos projetos que temos como entidade convidada para o Comité de Gestão. Fazemos reuniões semestrais para os informar e dar conhecimento dos avanços que estamos a conseguir. Gostaríamos que o ICNF nos facilitasse a vida, mas isso não tem acontecido. Ainda ontem recebemos o relatório da visita da Comissão Europeia ao projeto WolFlux. Numa apreciação que considero fantástica, o único ponto negativo assinalado é o atraso sofrido no reforço da população de corço, cuja execução depende do licenciamento do ICNF.

"Nos EUA, por exemplo, muitos dos parques existentes são geridos por organizações privadas e o Estado assume o papel do garante e de fiscalizador, ou seja, contratualiza a gestão com determinados objetivos e depois vai fiscalizando. Quando não funciona, retira-a."

Em Portugal existem poucas entidades privadas na área da conservação da natureza, quando comparado com outros países da Europa e do Mundo, onde se assiste a um aumento dos privados nesta área. O que é que afasta Portugal desta tendência?
Eu diria que há uma razão cultural e uma social. Primeiro, porque a participação cívica dos portugueses é fraca e, no que respeita à conservação da natureza, mais ainda. Mas admito que esta atitude esteja a mudar. E a segunda está relacionada com o Estado centralista que temos e que afasta veementemente essa participação ao criar-lhe barreiras. Nos EUA, por exemplo, muitos dos parques existentes são geridos por organizações privadas e o Estado assume o papel do garante e de fiscalizador, ou seja, contratualiza a gestão com determinados objetivos e depois vai fiscalizando. Quando não funciona, retira-a. Em Portugal, o Estado quer fazer tudo, faz a regulamentação, a gestão e a fiscalização e depois não faz nada bem.

Mas Portugal tem conseguido cumprir as diretivas europeias em matéria de conservação da natureza. Pelo menos, é o que diz o Estado.
No papel, sim. Portugal, quando entrou para a União Europeia – Comunidade Económica Europeia, na altura – em 1986, assinou o compromisso da diretiva Habitats. Mais tarde, em 1988, para a Rede Natura e em 1989/91 definiram-se as áreas da Rede Natura em Portugal com o objetivo de ter uma percentagem do território protegido. E foi tudo feito, mas no papel. Fizeram-se os planos setoriais, que foram utilizados para a submissão à Rede Natura, mas depois estes não foram acompanhados pelos devidos planos de gestão. Portugal foi multado cinco vezes por não entregar o plano de gestão das áreas da Rede Natura. E o que é que o ICNF fez? Contratou várias empresas para os fazerem, uma delas, criada semanas antes da assinatura do contrato com o ICNF e que tem apenas arquitetos paisagistas nos seus quadros,  está a fazer quase 50. Ou seja, eu temo que, mais uma vez, Portugal vá entregar um monte de papel, escrito por pessoas sem qualificações, sem ouvir a sociedade civil e os atores locais, para cumprir algo que foi sistematicamente adiando.

Existe muita filantropia no setor social, mas pouca na área da conservação da natureza. Porquê?
O Estado não é um parceiro de confiança para os filantropos. Aliás, é um pouco a filosofia da filantropia não financiar os poderes públicos. O Ministro do Ambiente e o Presidente do ICNF, Nuno Banza, declararam que queriam aumentar a filantropia privada na conservação da natureza, e é um dos objetivos desta nova Estratégia 2030, mas não sei como o pretendem fazer ou se já falaram com alguém com experiência na área. Sem arrogância, não conheço ninguém na última década que tenha conseguido maior volume de investimento filantropo para a conservação da natureza como a Rewilding Portugal.

Ponte de Sequeiros, no rio Côa.É uma pessoa muito viajada, que exemplos de parques naturais viu que poderiam ser aplicados em Portugal?
Itália tem alguns bons exemplos. É um modelo muito parecido com o nosso, mas tem resultados excecionais ao nível do turismo e da promoção do turismo em áreas naturais. O Parque Nacional de Abruzzo, onde está o Parque Nacional Magella, Gran Sasso, na zona central, é um exemplo. São áreas com gestão pública, mas autonomizada, ou seja, há um corpo gestor em cada parque, que tem a liberdade para fazer parcerias com entidades privadas e não é centralizada. Os diretores e os parques têm o seu próprio orçamento, o que lhes confere autonomia financeira. Por exemplo, são eles que pagam diretamente as indeminizações em casos de ataques de lobo. Isto faz toda a diferença, porque eles conhecem as pessoas. Isto, apesar do dinheiro dos seus orçamentos vir em parte do orçamento do Estado.

"Concordo 'com o princípio do utilizador pagador' porque é uma maneira de controlar as cargas e responsabilizar os visitantes, e são necessários fundos para conservar a natureza. Até defendo que parte das receitas dos parques mais visitados fossem usadas nos menos visitados, porque há zonas onde o turismo não vai ser suficiente, mas os custos de conservação existirão na mesma."

É possível em Portugal aplicar um modelo de utilizador pagador nos parques/áreas protegidas? Até por uma questão de financiamento da conservação da natureza?
Já acontece em alguns sítios, e acho que deve acontecer, embora em territórios vastos como o Vale do Côa, penso que seja impossível. No entanto, já se paga para visitar a Mata do Bussaco, atravessar de carro a Mata da Albergaria, no Parque Nacional Peneda Gerês. Em Sintra, o Monte da Lua, também se paga. Concordo porque é uma maneira de controlar as cargas e responsabilizar os visitantes, e são necessários fundos para conservar a natureza. Até defendo que parte das receitas dos parques mais visitados fossem usadas nos menos visitados, porque há zonas onde o turismo não vai ser suficiente, mas os custos de conservação existirão na mesma. Depois, as taxas provenientes da caça e da pesca são a segunda maior fonte de receita no ICNF e isso gera interesses contraditórios.

Qual é a sua opinião da atividade cinegética na gestão da conservação a natureza?
Sou caçador e pescador, sempre fui. O que eu não concordo é na maneira como ela está a ser gerida. Neste momento, a caça é um lóbi autodestrutivo. A caça pode ser um instrumento na conservação da natureza, mas a maneira como é gerida é contraproducente e isto deve-se aos próprios caçadores. Eu, contra mim, falo.

@iNature. Fotos iNature.