Fazem da Serra da Gardunha a sua casa e todos os meses fazem questão de a visitar através das várias dezenas de caminhadas que propõem aos associados e à comunidade em geral. Em março, os Caminheiros da Gardunha celebram o 25º aniversário, o que torna este Grupo de Interesse pela Natureza, como se afirmam, numa das mais antigas organizações do género no país. Numa conversa desafogada, Nuno Garcia, o Presidente da Direção, fala de arte, da festa de aniversário da associação e da edição especial da “Rota dos Castros”, que este ano rumará à Serra da Argemela para umas jornadas eletrizantes sobre a problemática da exploração do lítio. “Queremos e merecemos explicações”, diz e deixa o convite: “estão todos convidados”, para a festa e para as jornadas. É pena não haver torta de chocolate.
Arquiteto de formação, professor de arte de profissão. A natureza é a arte ou é a artista?
(Risos) Se formos rigorosos no que é a definição de arte e a definição de natureza, é perigoso juntar as duas coisas. O conceito de arte tem evoluído ao longo do tempo e o que hoje em dia se estabeleceu como arte, às vezes, não tem nada a ver com natureza. Porém, há um ponto comum. A arte e, nomeadamente, a arte contemporânea, sempre refletiu o contexto social, político, histórico, cultural vivido na altura em que surge e a arte contemporânea vai exacerbar um pouco essa relação com o mundo, com o que se passa no mundo e as grandes questões mundiais e locais, também. E, no aspeto em que a natureza é hoje uma preocupação da sociedade, é natural que faça parte das grandes temáticas e da arte contemporânea.
Houve uma altura que se pintava muito a natureza, o caso das naturezas mortas…
Natureza morta e natureza são duas coisas que convém distinguir bem. A natureza morta é uma expressão usada em português, mas que em inglês significa parada ou aquilo que não tem vida e que é uma representação, figuração de qualquer coisa que seja viva. É uma composição, normalmente, organizada, que pode ter como objeto frutas, legumes, animais mortos, mas não é isso que lhe dá o nome. A natureza foi representada na pintura, sobretudo no século XIX, logo após o Iluminismo, a época das grandes teorias científicas, e da Revolução Francesa que marcou aquela época e, em reação a todo um progresso tecnológico associado àquela época, surge o Romantismo, e uma fação de pintores, sobretudo britânicos, que fazem umas pinturas absolutamente maravilhosas. E, depois, surgem outros movimentos como o Realismo e Impressionismo. A arte é isto. A arte tem uma intenção, que está sempre relacionada com a época que se vive.
"...faz bem caminhar. Depois de fazermos uma caminhada ficamos sempre muito mais contentes".
Já nos deu uma aula de História da Arte, mas tenho que insistir. A natureza é a arte ou é o artista?
Não podemos dizer com rigor, e sendo nós responsáveis intelectuais pela utilização dos termos, que a natureza é uma arte. A natureza é o que é. É o real, o vero. A arte implica sempre uma criação humana e a natureza não. Confundir estas duas coisas pode ser perigoso, para a arte e para a natureza. Por isso, coloquemos as coisas no sítio certo. A arte é uma criação humana, se não houver abstração e um processo intelectual que leve à criação simbólica, a arte não existe. Se estamos a olhar para a natureza, podemos usar um outro termo que é a poética, que também inclui em si toda a carga estética do belo e da beleza e de toda a contemplação que isso provoca no espetador ou no utilizador. Hoje em dia, tanto na arte como na natureza coloca-se a questão da imersão. Nós entramos dentro delas, portanto, somos espetadores e estamos também lá dentro. E isso origina boas sensações. Portanto, vamos por as coisas no seu devido sítio. Uma questão mais terra a terra, é a natureza que existe por si, mas que pode ser apropriada pelo homem para criar arte, através de um processo intelectual que resulta de milénios de aprendizagem, a História da Arte.
Chegou aos Caminheiros da Gardunha há cerca de seis anos. O que é que o trouxe às caminhadas e, em particular, a este grupo?
Nada de especial. Foi um pouco necessidade de me mexer e de gostar de fazer caminhadas, porque já as fazia antes, principalmente na Serra da Gardunha, que é um sítio excelente para o fazer. Depois pela importância do movimento associativo na transmissão de valores, atitudes e posturas e, por fim, porque faz bem caminhar. Depois de fazermos uma caminhada ficamos sempre muito mais contentes.
Imagino que tenha muitos quilómetros de Serra da Gardunha nas suas pernas. Ao longo destes anos, que evolução viu na Serra, no que concerne à conservação do património natural. Tem existido "arte e engenho" para o preservar e valorizar?
Não. Não tem havido. Nós temos uma paisagem magnífica. Temos recantos na Serra da Gardunha que são edílicos, magníficos, e o engraçado é que estamos sempre a descobrir novos recantos e encantos. Nestes últimos anos, os incêndios que, desgraçadamente, fustigaram a Serra da Gardunha, alteraram-lhe a fisionomia e tiveram severos impactos na paisagem. Claro que, neste campo, a evolução não foi para melhor. Por outro lado, assistimos cada vez mais a uma humanização da paisagem com a introdução de produções mais ou menos intensivas de cerejais. A mim, que sou um leigo matéria, parecem-me intensivas, mas dizem-me que não são. Mas, seja como for, na minha opinião é muito e começa a ser exagerado. Nós andamos muito por ali e às vezes apanhamos com as aplicações dos produtos fitofarmacêuticos e…aquilo “cheira mal”, em todos os sentidos. Faz-nos torcer o nariz, literalmente, e em sentido figurativo. Portanto, devido a estes dois fatores, a evolução não é positiva, infelizmente.
O Diabo e as Tortas de Chocolate
Para uma instituição cuja principal função é organizar caminhadas, uma atividade ligada ao bem-estar, saúde e paz de espírito, não é arriscado chamar-lhes “Caminhada da Torta de Chocolate” ou “Nos Caminhos do Diabo”?
(Risos). Não. A justificação é simples e lógica. A "Caminhada da Torta de Chocolate" – sempre a primeira do ano, entre Fundão, Alpedrinha e regresso – começou a fazer-se nos primórdios dos Caminheiros e havia uma sócia que fazia anos no princípio de janeiro. Uma vez a caminhada calhou no dia de aniversário da senhora e ela chegou a Alpedrinha e comprou, numa loja que havia lá, uma ou duas tortas de chocolate e ofereceu aos participantes. A partir daí, a tradição instalou-se e, como é um doce, pegou bem. A loja, entretanto, encerrou. Agora compramos as tortas ou mandamos fazer aqui no Fundão. A torta de chocolate é um elemento simbólico que marca e faz referência à história dos Caminheiros, que tem sempre as pessoas na sua génese.
E o diabo, não assusta ninguém?
(Risos). Os “Caminhos do Diabo” é uma caminhada noturna que explora todo o imaginário da tradição oral, das histórias que se contavam sobre a má hora e outros caminhos do diabo que eram contadas às crianças para que elas se portassem bem. É em agosto e não tem nada de mal, nem é assustadora. Nem explora o esoterismo. É muito mais ligeira nesse aspeto e muito mais a brincar. São recolhas que nós vamos fazendo e que de alguma forma estejam relacionadas com o fantástico, as mezinhas, eventuais aparições, que fogem um pouco da matriz mais oficial da religião, e que nós aproveitamos para enriquecer as caminhadas.
"Nós temos interesse em fazer as caminhadas, os percursos pedestres, mas, ao mesmo tempo, alargar os nossos conhecimentos, recolher informações e ganhar competências".
Esse enriquecimento, o acrescentar camadas às caminhadas tem-se vindo a acentuar ao longos dos anos. A história, a cultura, a educação e sensibilização ambiental e até a intervenção têm vindo a entrar nos vossos planos de atividades. Pode explicar esta evolução?
Nós temos interesse em fazer as caminhadas, os percursos pedestres, mas, ao mesmo tempo, alargar os nossos conhecimentos, recolher informações e ganhar competências. E isso faz-se ao nível cultural, artístico e científico, por exemplo. As caminhadas deixaram de ser ir daqui até ali, para serem daqui a até ali com várias coisas a acontecer pelo meio. Nós andamos sempre ávidos de conhecimentos, de novas experiências, e temos também a intencionalidade de fazer intervenção, ação em que temos aproveitado os carnavais para, através da sátira, criticar as políticas locais, por exemplo. Mas também temos outro tipo de intervenção, porque ao fazermos caminhadas temáticas estamos a atrair atenções para esses temas.
Como por exemplo?
A nossa história. A "Rota das Invasões Francesas", que se realiza no final de setembro, início de outubro, é um momento em que se pensa na história da nossa região e da nossa serra. As invasões francesas deixaram marcas na nossa região e nós não percebemos bem como é que as coisas aconteceram, mas ficamos mais atentos e conhecedores. Até à pandemia tivemos atividades pedagógicas para crianças em colaboração com dois jardins de infância, que se traduzem em pequenos passeios com jogos relacionados com as plantas e os animais locais e, para graúdos temos a “Gardunha sem Lixo”. Esta, nem foi interrompida pela pandemia, porque inventamos maneiras de recolher o lixo sem beliscar as restrições impostas pela pandemia. Todos os anos retiramos toneladas de lixo da Serra. A “Gardunha sem Lixo” será em maio.
Procuramos também chamar à atenção para o nosso património paisagístico e também para o construído. No ano passado, introduzimos a "Rota dos Castros", e fomos à Covilhã Velha, onde existe um dos maiores castros do nosso concelho. É uma forma de chamarmos à atenção para a existência destes sítios arqueológicos e para o absoluto abandono e desproteção a que estão submetidos. A nossa intenção com esta rota é passar pelos 12 castros que estão identificados no concelho do Fundão e criar um movimento de reconhecimento para a sua identificação como património. Cada caminheiro que levamos lá, é mais uma pessoa que fica a saber que aquilo existe e que é um património que tem que ser classificado, porque é a melhor forma de o proteger. Temos ainda a “Gardunha Poética” e muitas outras. É consultar o nosso plano de atividades.
“Rota dos Castros” com edição especial
A "Rota das Castros" este ano vai ser diferente. Sei que vai ser na Argemela, uma escolha que não é ingénua, penso, mas gostaria de contasse aos nossos leitores o que se vai passar este ano. Vai ser diferente das edições anteriores. Certo?
É verdade. A "Rota dos Castros", que no ano passado foi na Covilhã Velha – entre os Enxames e a Póvoa Palhaça -, vai ser na Argemela ou, melhor, uma caminhada ao Castro da Argemela. E, como disse, nem foi uma escolha ingénua, nem será somente uma caminhada. Toda a gente está a par da problemática da exploração mineira do lítio. Há uma série de locais no país identificados como possíveis locais para a extração do lítio, e sabemos que, na Serra da Argemela, um pouco a baixo do Castro, está já definida uma zona onde vão fazer a prospeção de lítio. Toda a gente ouviu os ambientalistas e as pessoas preocupadas com o ambiente e com as questões relacionadas com a paisagem e a natureza. Ouvimo-los muito preocupados com o que essas explorações poderão deixar no território, e ouvimos também com atenção as conclusões de outros estudos de impacto ambiental a afirmar que não é preocupante. Porém, nós não somos técnicos, somos utentes interessados no território, na natureza, na paisagem e património, a todos os níveis, e entendemos que a edição deste ano da "Rota dos Castros" podia transformar-se numas jornadas de esclarecimento.
"Queremos juntar os contraditórios e queremos explicações, queremos que nos expliquem estas coisas, porque essa explicação, às pessoas, aos locais, nunca foi feita e nós queremos e merecemos saber o que vai acontecer aqui".
E o que vão fazer nesse sentido?
Vamos chamar os vários atores que estão envolvidos nesta problemática. Em primeiro, os técnicos. Queremos que venham cá explicar-nos as coisas numa linguagem que toda a gente perceba. Há técnicos do lado dos ambientalistas, do lado das empresas que irão explorar o minério, e há os técnicos da tutela, dos organismos oficiais que tutelam a atividade e a exploração mineira. Depois haverá uma abordagem mais cultural ou lúdica, onde entra turismo, nós, Caminheiros, e utentes no geral. Queremos ouvir o que estas pessoas têm a dizer sobre o tema. E, finalmente, temos uma abordagem que talvez seja a mais importante de todas, a política. E, nesta, gostávamos de ter cá todos os protagonistas.
Já endereçou algum convite?
Ainda não. Porque ainda estamos a preparar a atividade e porque ainda não há protagonistas (não há governo). Fala-se agora que só haverá governo em maio e nós temos a "Rota dos Castros" marcada para o dia 30 de abril e 1 de maio. Vamos ver.
A atividade será aberta a toda a gente?
Sim. Nós queremos envolver toda a população. Vamos fazer duas caminhadas, as duas em simultâneo, uma que vem da Covilhã e uma que vai do Fundão. Isto porque a Argemela está no limite dos dois concelhos e, portanto, sabemos que os caminheiros da Covilhã têm as mesmas preocupações que nós.
Serão então dois dias.
Sim, no primeiro dia, os debates e no segundo dia, as duas caminhadas em simultâneo. Estamos a pensar fazer os debates no sábado e as caminhadas no domingo.
Disse que querem cá os protagonistas políticos. Apesar de ainda não existir Governo, está a pensar em que cargos?
Quando falamos em protagonistas políticos, estamos a falar dos políticos locais, cuja posição já conhecemos, falo dos autarcas da Covilhã e do Fundão. Os presidentes das Juntas de Freguesia, que são quem leva com o primeiro embate com tudo o que se decide para o território, e gostaria de lembrar que os presidentes de junta são os políticos que apesar de serem os políticos mais próximos da população, são aqueles que menos autonomia têm em relação a estas questões, pelo que gostaria de lhes deixar aqui a minha homenagem. Depois, evidentemente, do poder local passamos para o poder central que, como se sabe, está descentralizado. Ou seja, estamos a falar de CCDR, direções regionais e gerais disto e daquilo, secretários de estado, ministro e primeiro-ministro.
Vai disparar para todo o lado. Está a pensar convidar o Presidente da República?
(Risos) Não sei. Mas, se calhar, sim. Ainda estamos a discutir quem devemos convidar, mas a nossa intenção é convidar toda esta gente. As nossas intenções não são políticas. Queremos juntar os contraditórios e queremos explicações, queremos que nos expliquem estas coisas, porque essa explicação, às pessoas, aos locais, nunca foi feita e nós queremos e merecemos saber o que vai acontecer aqui.
@iNature.