Da esq. p/dir. - Christelle Domingos, Paula Fazenda e Patrícia Coelho no Inovcluster, em Castelo Branco.AINDA HÁ PASTORES. POR ENQUANTO.

Se daqui a uma década Jorge Pelicano realizar uma sequela do documentário publicado em 2006 sobre a tradição pastorícia na Serra da Estrela é bem provável que o intitule “Já não há pastores”. Esta é a premonição comum de Christelle Domingos, Paula Fazenda e Patrícia Coelho (foto 1 da esq. p/dir), e que, através da Inovcluster - Associação do Cluster Agroindustrial do Centro, coordenaram o Programa de Valorização da Fileira do Queijo DOP na Região Centro. Em jeito de conclusão, as três responsáveis são perentórias: ou se valoriza a fileira do Queijo com DOP ou perder-se-á, a médio prazo, um dos produtos endógenos mais importantes para a economia do interior e todo o património imaterial, ambiental e biológico associado.

Entre 1999 e 2019, o número de explorações de ovelhas leiteiras na região da Beira Baixa diminuiu 46,7% e o número de efetivos (animais) decresceu 31,1%. São números que revelam uma tendência azeda para uma das mais importantes atividades económicas da região das Beiras. Na base desta realidade estará, naturalmente, a migração das populações do interior para as cidades do litoral, os períodos de seca cada vez mais acentuados e os incêndios que assolaram a Região Centro, originando perdas elevadas de efetivo animal e a destruição de pastos e infraestruturas de apoio. Mas não só.

“A profissão de pastor está ameaçada de extinção”, afirma Christelle Domingos, Diretora Executiva do Inovcluster, entidade que entre 2019 e 2022 executou o Programa de Valorização da Fileira do Queijo DOP da Região Centro, um projeto com objetivo de valorizar a Fileira do Queijo DOP da Região Centro, através da implementação de um plano de ação estratégico e pioneiro em conjunto com quinze entidades, com o objetivo de apoiar todos os agentes da atividade a identificar e resolver os principais estrangulamentos da cadeia de valor dos Queijos com DOP da Região Centro. Os motivos de tal afirmação são vários.

À cabeça dos sete objetivos estratégicos do programa esteve a implementação de uma estratégia de rejuvenescimento, valorização e competitividade da fileira, para ir de encontro à tendência da década de dados reunidos pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). O projeto-piloto “Escola de Pastores” e o “Vale Pastor”, um apoio à instalação no valor de cinco mil euros, estiveram entre as ações mais inovadoras para atrair, formar e financiar os candidatos.

“Conseguiu-se algum rejuvenescimento”, afirma Patrícia Coelho, Presidente da Inovcluster.

Na primeira edição da “Escola de Pastores”, realizada na Escola Superior Agrária de Castelo Branco e na Escola Superior Agrária de Viseu, registram-se 127 candidaturas tnedo sido selecionados onze e quinze formandos, respetivamente. Na edição da escola em Viseu, o resultado culminou num aumento de 330 efetivos fêmea dedicados à produção de Queijo Serra da Estrela DOP, mais 2,26% que o número existente no final de 2018. Já na edição realizada em Castelo Branco, o somatório dos efetivos resultantes de novas instalações com o aumento das existentes originou um incremento de 1% no número de efetivos ovinos e 8,6% de caprinos, com orientação, maioritariamente, para a produção de Queijo da Beira Baixa DOP.

Na segunda edição, realizada Escola Superior Agrária de Castelo Branco, na Escola Superior Agrária de Viseu e na Escola Superior Agrária de Coimbra, foram disponibilizadas 36 vagas (12 para cada escola), às quais responderam 27 candidatos. Destes vinte formalizaram a inscrição apenas treze concluíram o curso. 

No total foram atribuídos 22 "Vales Pastor", 14 na primeira edição e oito na segunda. “Conseguiu-se algum rejuvenescimento”, afirma Patrícia Coelho, Presidente da Inovcluster.

João (filho), gosta de pastorear, mas o pai, João Costa, vê a atividade com um futurio muito incerto.PASTORÍCIA É POUCO ATRATIVA

Uma vida simples, ao ar livre e em constante contacto com a natureza, conferem à profissão de pastor um certo romantismo. Mas desta visão simpática ao quotidiano da atividade vai uma distância do tamanho da Serra da Estrela. “É uma atividade de sol a sol, 365 dias por ano”, diz Christelle Domingos. “Ainda há pouco tempo estivemos com uns produtores na casa dos 70 anos que estão com dificuldade em assegurar a atividade que têm [pastorícia e queijaria]. Já lá tiveram um filho e uma filha, mas ambos desistiram. Agora depositam a esperança no neto, disseram-nos”, conta Patrícia Coelho.

João Costa (foto 3), pastor de Gandufe, Mangualde, concelho onde se produz leite para o famoso queijo da Serra da Estrela, conhece bem a dureza da atividade. É proveniente de uma família de pastores e o filho, o pequeno João de 11 anos (foto 2), é a sua companhia nos dias em que não tem escola. “Ele gosta disto”, diz. Todavia, quando questionado sobre se gostaria de ver o filho seguir as pisadas da família, tem dúvidas. “É uma vida muito dura e muito pouco rentável”, lamenta.

“O preço do leite é um dos calcanhares de Aquiles da atividade pastorícia. É vendido a preços muito baixos. Tem de ser valorizado”, defende a Diretora Executiva da Inovcluster. Na região de Gandufe, o leite das ovelhas de raça Bordaleira, raça autóctone da região e elegível para produção de queijo da Serra da Estela com DOP é comprado pelas queijarias por valores a rondar os 1,5€/litro, um valor muitas vezes alavancado por apoios de municípios, mas insuficiente para enfrentar o aumento dos custos de produção e a menor produtividade da raça quando comparada com outras (cruzadas). Entre os agentes do setor, é consensual que o valor do leite elegível para produção de queijo com DOP tem de valorizar para valores em torno do 2€/litro para que a atividade se torne minimamente atrativa.

“O preço do leite é um dos calcanhares de Aquiles da atividade pastorícia. É vendido a preços muito baixos. Tem de ser valorizado”, defende Christelle Domingos, Diretora Executiva da Inovcluster.

Para chegar a este valor, é necessária uma melhoria da rentabilidade de toda a fileira. "As cooperativas e associações de produtores têm um papel importante devido ao seu efeito agregador", explica Christelle Domingos, "mas muitas também têm problemas de rentabilidade", adianta. O trabalho realizado pela Estrelacoop - Cooperativa de Produtores de Queijo da Serra da Estrela com o apoio do Programa de Valorização é um exemplo de caminho apontado pelas responsáveis do Inovcluster. Por um lado, o programa permitiu à cooperativa adquirir veículos elétricos de recolha de leite, o que originou uma diminuição dos custos e uma consequente melhoria da rentabilidade, que foi depois canalizada para o aumento do preço do leite pago aos produtores, e, por outro, a cooperativa, através do seu poder de mercado conseguiu acordar um preço de venda mínimo do queijo com DOP em algumas superfícies comerciais. "Tem de haver mais associações a fazer este trabalho", defende a Diretora Executiva da Inovcluster, apontando para a necessária melhoria da gestão das cooperativas e para um maior uso do seu poder reivindicativo.

GESTOR DO REBANHO E DA PAISAGEM

“Quando pretendemos cativar as novas gerações para estas atividades, temos de estar cientes que existem questões culturais cuja mudança é difícil de concretizar, sobretudo em pouco tempo”, explica Christelle Domingos. Além de dura, a profissão de pastor não é valorizada socialmente. Porém, numa altura em que a sustentabilidade e a preservação ambiental são tão valorizadas, e a importância das experiências culturais e gastronómicas no contexto turístico está mais do que provada, essa perceção não pode estar mais errada.

João Costa. O pastor de Gandufe um gestor da paisagem da aldeia.Em Gandufe João Costa não é apenas um pastor conhecido na aldeia. O rebanho que guarda e encaminha com o filho e o cão Serra da Estrela pelos terrenos da aldeia cujos donos não têm capacidade ou idade para cuidar, fazem dele um gestor da paisagem. E a parceria realizada com a Casa das Palmeiras – Nature Houses & Pedagogic Farm, da qual nasceu o programa “Conhecer o Queijo do Pasto à Mesa”, fazem dele um operador turístico.

“Há algum estigma em torno da profissão de pastor. Há uma sobrevalorização social do 'doutor' e até do indiferenciado, e um desconhecimento do papel e do valor da profissão”, diz Patrícia Coelho.

Um pouco por todo o país têm-se multiplicado iniciativas semelhantes. No Parque Natural da Serra de Aire e Candeeiros, a Cooperativa Terra Chã possui um rebanho comunitário que foi fundamental para a recuperação do habitat da Gralha de Bico Vermelho. E do leite do rebanho de cabras nasceu um queijo cujas vendas contribuem para financiar as atividades de educação ambiental e turísticas promovidas pela associação. Entre elas a experiência "Ser pastor por um dia". (Saiba mais sobre este projeto AQUI).

“Há algum estigma em torno da profissão de pastor. Há uma sobrevalorização social do 'doutor' e até do indiferenciado, e um desconhecimento do papel e do valor da profissão”, diz Patrícia Coelho. Como conclui o Programa de Valorização da Fileira do Queijo DOP na Região Centro, além da diminuição dos entraves ao investimento e ao aumento da rentabilidade da atividade, é necessário valorizar o pastor pelas funções ambientais, mas também pela manutenção de uma cultura e saberes que acrescentam valor ao turismo e vice-versa.

É no sentido da valorização turística da atividade da pastorícia e da produção de queijo DOP que a Inovcluster está a desenvolver a "Rota dos Queijos DOP do Centro". "A ideia surgiu no seguimento do Programa de Valorização da Fileira do Queijo DOP da Região Centro e irá basear-se em visitas e experiências associadas à pastorícia e produção do queijo DOP da Região Centro", adianta. A rota será apresentada ao público até ao início do verão.

Ovelha Serra da Estrela Bordaleira a pastar.MAS, O QUE É QUE O QUEIJO DOP TEM?

A Denominação de Origem Protegida (DOP) é uma certificação conferida a queijos produzidos em regiões específicas, com leite de qualidade biológica e físico-química superior, com ingredientes únicos e técnicas de produção artesanais. Deste conjunto de critérios resulta um queijo de excecional qualidade e sabor único, mas não só. Resulta também uma atividade que contribui para a preservação de um saber fazer ancestral, das pastagens e da sobrevivência de algumas raças de ovinos e caprinos. 

Em Portugal existem onze regiões de queijo com certificação DOP, três das quais na Região Centro de Portugal – Serra da Estrela, Beira Baixa e Rabaçal -, às quais estão associadas raças de ovinos e caprinos autóctones. Algumas, como a ovelha Churra do Campo, estão em risco de extinção. Ou seja, produzir e consumir um queijo com DOP é contribuir para a preservação de todo um património cultural, ambiental e biológico que está em risco de se perder.

“Estamos a assistir à industrialização da fileira do queijo. É isso que queremos?”, questiona Christelle Domingos. “Será que há a consciência do que se está a perder?”, pergunta. “Este saber fazer é um património imaterial que temos de preservar”, defende a Diretora Executiva da Inovcluster.

O poder da escala económica, da concorrência e do preço, leva a crer que sim. Há muito queijo regional a ser produzido com leite importado e a diferença para melhor é pouco valorizada no preço do produto final (ver tabela). “Parecendo que não, estamos a perder qualidade no queijo”, aponta Patrícia Coelho. A conclusão das três responsáveis da Inovcluster é clara: é preciso valorizar a fileira do Queijo com DOP para inverter este processo de perda em cadeia.

Entre 2017 e 2020, não nasceu uma única queijaria a produzir um dos cinco queijos certificados com DOP da Região Centro, pelo contrário.

A “Escola de Queijeiros” surge no programa para combater este caminho. Também em modo “projeto-piloto”, recebeu 96 candidaturas repartidas por duas edições em três localizações diferentes – Castelo Branco, Viseu e Coimbra -, uma procura bastante superior às vagas disponíveis. Destas resultaram 39 potenciais “novos queijeiros”, mas apenas nove resultaram em novas queijarias ou novas produções com DOP. Sabe a pouco tendo em conta a evolução recente. Entre 2017 e 2020, não nasceu uma única queijaria a produzir um dos cinco queijos certificados da Região Centro, pelo contrário. (ver tabela)

Evolução do número de queijarias com produção DOP.No âmbito do Programa programa foi criado o “Vale Pastor+”. “Este ‘vale’ teve como objetivo premiar o leite de melhor qualidade fornecido a queijarias que fabricassem Queijo DOP”, explica Paula Fazenda. No total, surgiram 130 candidatos que durante seis meses encaminharam os boletins de análise do leite obtido pelos seus rebanhos para o Centro de Apoio Tecnológico Agro-Alimentar, em Castelo Branco. No final, 115 destes cumpriram os critérios de qualidade exigidos e foram premiados com o “Vale Pastor+”, no valor de 2500 euros. Ou seja, há leite de qualidade para produzir queijo de qualidade com DOP. Então, porque que é que não se produz mais? “Houve um período em que se deixou de falar de Queijo com DOP. Mais atrás até houve muita adesão, mas o interesse foi desvanecendo, porventura devido aos custos, e a produção de queijo com DOP diminuiu”, justifica a gestora do projeto.

UM TRABALHO PARA CONTINUAR

O relatório final do Programa de Valorização da Fileira do Queijo DOP da Região Centro será publicado em breve pela Inovcluster, mas os dados já compilados permitem retirar algumas conclusões preliminares. Uma delas é que o programa teve um efeito positivo. Em 2021, a produção recuperou para níveis de 2018, após uma quebra acentuada em 2020, e o valor de económico (volume de vendas) atingiu o valor mais elevado de sempre – 4,9 milhões de euros.

Patricia Coelho e Christelle Domingos, Presidente e Diretora Executiva da Inovcluster, em Castelo Branco.

Há muito espaço para crescer. A quota de produção dos queijos com DOP na produção total de queijo em Portugal ronda os escassos 2%. E, na Região Centro, já se produziu mais queijo com DOP no passado, o que face à evolução negativa do número de explorações e queijarias antecipa um futuro desafiador para o crescimento da fileira.

“Estamos contentes com o que conseguimos, mas não é com um projeto de três anos, dois dos quais em contexto pandémico que vamos lá”, diz Christelle Domingos. “Isto é um trabalho de formiga, a longo prazo. Tem de se fazer com o queijo DOP o caminho que foi feito com o vinho DOP”, defende. Paula Fazenda, concorda. “Este projeto conseguiu que se voltasse a falar do Queijo com DOP, mas ainda não conseguiu mudar a perceção dos produtores, comerciantes e consumidores”, diz, sublinhando a importância da continuidade do trabalho de valorização da fileira do Queijo com DOP.

As sementes dos projetos-piloto “Escola de Pastores” e “Escola de Queijeiros” estão a germinar. Um pouco por todo o país, surgem iniciativas semelhantes e no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência foi aprovado em março o “Be Cheese”, um programa que visa trabalhar a autenticidade e valorização do queijo da Serra da Estrela. Na Inovcluster, há a intenção de continuar o trabalho, mas da mesma forma agregada.

“Uma segunda edição do programa iria permitir-nos trabalhar de forma mais cirúrgica sobre o consumidor, o comerciante e o produtor, e sensibilizá-los para a importância desta produção”, explica Paula Fazenda. No entanto, não conseguem vislumbrar a continuidade do trabalho de valorização sem ser de forma agregada. “Podíamos trabalhar apenas sobre a região da Beira Baixa, mas não vemos isso assim. Só de forma agregada é que se consegue ganhar escala e criar valor”, defende Christelle Domingos.

“Temos uma equipa muito bem preparada e estamos atentos a oportunidades de financiamento”, diz Patrícia Coelho. Pela vontade da Presidente da Inovcluster, o Queijo DOP e toda a cultura e economia associada à fileira do Queijo na Região Centro vai continuar a ser trabalhada pela Associação. “Não podemos ver as coisas de outra forma. É demasiado importante”, defende.

Informação útil:

 

Modelos técnico-económicos de produção

 

@iNature. junho 2023.